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Mobilidade Humana e Coronavírus - Como a flexibilização de direitos trabalhistas pode afetar migrantes: a questão da negociação coletiva
No campo normativo, a crise do novo Coronavírus no Brasil pronunciou-se pela edição de leis, decretos e medidas provisórias que versam sobre uma série de maneiras para "enfrentar" a crise socioeconômica.
Quanto aos direitos dos trabalhadores, mencionam-se as Medidas Provisórias n. 927 e 936, esta última convertida em lei (Lei 14.020/2020) com as devidas modificações[1]. As normas possibilitam, por exemplo, a suspensão de contratos de trabalho, a redução de jornadas e a flexibilização na maneira de compensação de jornada por meio de acordos individuais diretamente entre trabalhador e empregador. Apesar de existirem outras previsões, nesta exposição pretende-se refletir sobre o papel dado às negociações individuais, em detrimento da coletiva, e os impactos para a população trabalhadora migrante.
Preliminarmente, deve-se apresentar entendimentos sobre a negociação coletiva e sua importância para o ordenamento jurídico. Como é cediço, a relação de trabalho é caracterizada, em sua essência, pela desigualdade entre as partes: empregador de um lado e trabalhador de outro. A hipossuficiência do trabalhador é inerente à relação laboral no capitalismo em que se vende a força de trabalho em troca de um salário, aceitando-se as condições estruturais postas a fim de se enquadrar ao sistema produtivo.
O direito do trabalho, assim, é constituído por institutos e princípios próprios que regem as relações jurídicas em torno do trabalho humano, considerando esse pressuposto da desigualdade.
O papel dos sindicatos, nesse contexto, é de suma importância, pois possui como escopo a representação e a defesa de interesses individuais ou coletivos de determinada categoria de trabalhadores, conforme previsto na Constituição Federal (art. 8º). O trabalhador, quando representado de maneira coletiva, por meio de sindicato, assume forma também coletiva e mais poderosa, capaz de realizar acordos com empregadores, de maneira menos desigual. Em relação ao trabalhador migrante, é importante mencionar que o direito à sindicalização (filiação/desfiliação, atuação ativa de migrantes em sindicatos, entre outros) foi expressamente garantido desde a edição da Nova Lei de Migração[2].
Uma das principais funções dos sindicatos, aliás, é a participação nas negociações coletivas de trabalho de forma obrigatória[3], as quais configuram-se importantes ferramentas de proteção próprias da seara trabalhista. Por meio da negociação, criam-se instrumentos (acordos e convenções coletivas de trabalho) que passam a reger um grupo determinado de indivíduos. Como se permite a participação da sociedade na solução de conflitos (por meio de sindicatos e de trabalhadores conjuntamente considerados), trata-se de uma garantia de maior democracia às estruturas sociais[4].
A doutrina aponta a relação entre o papel da negociação coletiva e os modelos jurídicos de cada sociedade – mais democráticos ou mais autoritários. Defende-se que a atuação das formas de normatização autônomas, ou seja, aquelas não produzidas pelo próprio Estado (heterônomas) são formas presentes em modelos jurídicos trabalhistas democráticos. Isto porque se permite participação dos sujeitos interessados na regulamentação de seus próprios conflitos, segundo seus interesses e suas peculiaridades (participação social na estruturação das relações sociais). O papel da negociação coletiva, nesses modelos, é acentuado, permitindo-se maior criatividade e força no âmbito negocial.
Por outro lado, quando há um forte viés autoritário no Estado, o padrão acaba se repetindo na lógica das relações de trabalho e, então, há o afastamento da ideia da participação da sociedade civil e cria uma dinâmica cujas linhas mestras se caracterizam por assegurar o contínuo impedimento a essa participação[5]. Os modelos menos democráticos tendem ao distanciamento de pressões e de sugestões a serem propostas pela coletividade de indivíduos em sociedade. Tais modelos foram adotados, por exemplo, na Alemanha nazista ou na Itália fascista no século XX.
Feitas as considerações necessárias, nota-se que o modelo de afastamento do papel dos sindicatos, garantindo a prevalência aos acordos individuais, no atual momento de crise socioeconômica no Brasil, caminha em direção oposta à busca de uma estruturação democrática do conjunto social.
As normativas editadas pelo Governo retiraram a necessidade de negociação coletiva para acordos entre empregadores e trabalhadores em situações nas quais, anteriormente, a legislação impunha a negociação (como para redução de jornada e salários). Essas modificações podem gerar diversas inseguranças e, em alguns casos, situações de extrema vulnerabilidade, devendo a população migrante no Brasil se atentar ainda mais.
Percebe-se que, com a crise vivida pela pandemia, aumentam-se as barreiras já existentes, como a língua e a não compreensão das instituições brasileiras e dos meios de acesso à justiça. Quanto, especificamente, ao enfraquecimento do papel da negociação coletiva nos pactos laborais, isto gera uma situação de muita fragilidade, pois, conforme mencionado, a participação de sindicatos em acordos entre as partes é uma forma de proteção que a norma impõe e de exercício da democracia.
Os trabalhadores migrantes em diversas ocasiões já enfrentam dificuldades de compreensão do sistema jurídico e, mesmo antes, da língua. Já em épocas pré-pandemia, diversas fraudes trabalhistas ocorriam, com a coação de indivíduos para assinarem papéis que não podem compreender pela língua ou pela forma das instituições nacionais. No momento atual, sem a presença de sindicatos ou de algum auxílio à negociação, a situação poderá se agravar com a ação de empregadores que não se dispuserem a dialogar com os seus trabalhadores nacionais, de outros países ou mesmo agirem com má fé.
A falta de um olhar sistêmico da realidade faz com que as práticas adotadas pelo Governo estejam muito aquém de garantir efetividade a qualquer princípio previsto em legislações internacionais[6] ou mesmo internas[7] e abrem espaço para aumento de vulnerabilidades, ao não se considerar realidades de língua, de compreensão de instituições ou de outras especificidades a depender do grupo social. A questão ilustra claramente a ideia da interligação de barreiras, como as linguísticas[9], com a fruição de todos os direitos. Quando uma norma, que antes protegia determinadas relações, passa a ser flexibilizada, a violação de direitos ocorre com maior facilidade.
Muita atenção deve ser tomada por migrantes e, também, por órgãos da sociedade civil que atuam com migrações para auxílio na verificação de acordos individuais de trabalho celebrados para compensação de jornada, suspensão de contratos, detalhes sobre forma de prestação dos serviços, dentre outros, para se evitar a exploração e a violação da dignidade do trabalhador migrante.
Por fim, deve-se dizer que não se pode normalizar, mesmo sob a justificativa de emergência, a edição de normas pelo Governo que não dialogam com princípios e disposições garantidoras de direitos, sob pena de um completo afastamento da efetivação de estruturas democráticas no país, como a negociação coletiva, proteção e valorização social do trabalho e dignidade do trabalhador migrante.
Juliana Mary Yamanaka Nakano é advogada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), especialista em direito do trabalho, pós-graduanda na especialização de direito do trabalho da USP e Coordenadora do PROMIGRA - Projeto de Promoção dos Direitos dos Migrantes (USP).
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências bibliográficas
[1] A Medida Provisória 927 perdeu a validade em julho de 2020.
[2] Lei 13445/2017. Art. 3º A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes: (...) VII - direito de associação, inclusive sindical, para fins lícitos;
[3] Constituição Federal: Art. 8º VI - é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho;
[4] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16ª ed. São Paulo: LTr, 2017. pp. 1559.
[5] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16ª ed. São Paulo: LTr, 2017. pp. 1561.
[6] Principais referências normativas em âmbito internacional são aquelas relacionadas ao direito de igualdade previsto em diversos instrumentos normativos como Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), Pacto internacional de Direitos Civis e Políticos (1966). Especificamente, menciona-se a Convenção n. 143 (1975) da Organização Internacional do Trabalho (não ratificada pelo Brasil) relativa às migrações em condições abusivas e à promoção da igualdade de oportunidades e de tratamento dos trabalhadores migrantes; e Convenção da ONU para a Proteção dos trabalhadores migrantes e seus familiares (1990).
[7] Nacionalmente, temos que a Constituição Federal promulgada em 1988, assim como nova lei de migração, garantem uma série de princípios e diretrizes gerais aos migrantes e o reconhecimento de sua condição de sujeito de direitos. Ocorre que, contraditoriamente e, demonstrando que não existe uma ordenação entre as normativas mencionadas, as modificações trazidas pelas normas em resposta à crise do Covid-19 podem afetar sobremaneira os direitos de muitos indivíduos e, conforme demonstra-se neste artigo, de migrantes.
[8] OLIVEIRA, Gilvan Muller de. SILVA, Julia Izabelle da. Quando barreiras linguísticas geram violação de direitos humanos: que políticas linguísticas o Estado brasileiro tem adotado para garantir o acesso dos imigrantes a serviços públicos básicos? GRAGOATÁ, Niterói, v. n. 42, p. 131-153, jan-abr. 2017.
Crédito da foto da chamada: Unsplash