Blog
Compartilhe
Mobilidade Humana e Coronavírus: "Quando você migra, você muda de personalidade um pouco, você não pode ser você mesmo"
Por Guilherme Ramalho
Pamplona é uma província colombiana ao norte de Santander com cerca de 60 mil habitantes, conhecida por seu turismo religioso que lhe rendeu o apelido de "ciudad mitrada", a cidade da mitra, dado o número de igrejas e outras construções religiosas. Em comparação demográfica com a cidade de São Paulo, seria parecido com, por exemplo, a Mooca, bairro onde se localiza o Museu da Imigração, que – em 2010 – contava com uma população de 75 mil habitantes. Não à toa para Indira, nossa entrevistada da semana, que a primeira impressão dessa metrópole tenha sido seu tamanho:
No começo foi legal porque tudo é novo, você [conhece] novas pessoas, mas teve um momento eu me senti bem intimidada pela cidade porque eu achei muito grande, muito, muito grande.
Em outro trecho diz:
Eu me sentia muito pequena nessa cidade (...) [Foi meu trabalho] que me ajudou a me sentir mais cômoda conhecendo bairros diferentes do centro, onde eu moro.
Advogada de profissão, Indira veio para o Brasil quando seu companheiro, Juan Sebastian, recebeu convite para trabalhar em São Paulo. Ambos são nascidos em Pamplona, mas há alguns anos moravam em Bogotá. Assim como no Brasil, existe na Colômbia um deslocamento interno característico em direção às grandes cidades, onde se concentra a maior oferta de trabalho e oportunidades. Aqui, atuou como voluntária em organizações e equipamentos de assistência jurídica para outros migrantes, como a Defensoria Pública da União (DPU) e o grupo de extensão universitária Promigra, da USP. Destaca que esse ponto chamou sua atenção na oferta de atendimento que migrantes tem no Brasil:
O conceito da migração no Brasil é bem diferente do que na Colômbia, por exemplo. Na Colômbia, a migração é quase criminalizada, na verdade. (...) usam migração dos venezuelanos, para questões políticas. Por exemplo, para falar: “vote para tal pessoa para não ser como a Venezuela”. Mas é muito forte isso, esse tipo de... atitudes ou discursos. Eu acho que, aqui no Brasil, quando eu cheguei aqui, que comecei a trabalhar na DPU, eu achei muito curioso, muito bom, o CRAI [Centro de Referência e Atendimento ao Imigrante], o Promigra, as pessoas acho que estão mais engajadas com a questão migratória.
Indira mora em São Paulo há pouco menos de dois anos e sua trajetória, como coloca, tem particularidades e semelhanças com a história de outros migrantes. Sobre as diferenças, diz que não houve uma necessidade explícita no processo de mudança para o Brasil, tampouco uma escolha sistemática, mas, sim, um conjunto de casualidades que se acumularam, a começar pelo convite que seu companheiro recebeu para trabalhar em São Paulo.
Eu não tinha planejado vir morar no Brasil, eu me formei e achei uma boa ideia para conhecer um outro país, morar em um outro lugar por um tempo (...) Eu queria falar sobre isso também, tem alguns aspectos que a gente vive por ser migrante, mas minha migração foi bem mais tranquila por esse motivo. Quando eu cheguei, ele [o namorado] já tinha alugado um apartamento, tudo foi bem mais tranquilo pra mim.
Com o passar do tempo e o processo de adaptação, Indira relata aspectos que são semelhantes na vida de quem migra: a saudade de casa, a rede de contatos que ficou, as comidas que não são mais as mesmas e a dificuldade com a língua, principalmente. Apesar de ter estudado a língua portuguesa antes de vir, contou que, no início, foi difícil se adaptar:
Eu entendia algumas coisas, mas não podia me comunicar muito bem. Eu estudei o idioma (português), mas o idioma que você fala na rua com as pessoas é bem diferente do que [o que você aprende].
Eu achava que não conseguia me comunicar com as pessoas bem. Ainda hoje acho que não posso ser eu mesma, aqui no Brasil. É uma coisa bem estranha. Não sei se alguma vez você migrou, mas quando você migra, você muda de personalidade um pouco, você não pode ser você mesmo (...) o idioma, as regras culturais.
Outro aspecto de dificuldade que coloca é o excesso burocrático na validação de seu diploma, que – no início – a impediu de exercer a mesma profissão que atuava na Colômbia. Os dois fatores conjugados a levaram a procurar outros tipos de trabalho, começando a ministrar aulas de inglês em uma escola voltada para negócios na zona sul de São Paulo, entre os bairros Capão Redondo e Campo Limpo. Isso ajudou a expandir a cidade que conhecida de fato. Conta:
Era uma experiência nos bairros afastados de São Paulo, então me ajudou a conhecer outras pessoas, de toda a cidade (...) [apesar de] ser advogada, eu também estudei licenciatura em língua estrangeira, mas não terminei, mas na faculdade de idiomas estrangeiros eu tive aulas e aprendi algumas coisas de pedagogia.
De início, boa parte das suas relações sociais eram mediadas pelo ambiente de trabalho na escola de idiomas, comunicadas em inglês, nunca se aprofundando de fato na criação de redes afetivas:
Por exemplo, quando eu fui professora de inglês, foi legal porque eu não tinha que falar português, mas também não me relacionava muito com as pessoas em profundidade. Então, você começa a se sentir bem “islada" (isolada), que você não pertence a nenhum grupo. Por isso que eu acho que aqui não sou a mesma pessoa que sou na Colômbia. Então, agora não sei como voltar a ser a outra Indira, inicial, com os brasileiros porque é diferente. Você fala outro idioma, tudo muda, você tem que se expressar de outro jeito, sua expressão corporal também muda.
Estava trabalhando nessa escola quando, em março, foi decretada a quarentena na cidade de São Paulo. Como muitas outras empresas do setor de serviços, a gestão dispensou parte de sua equipe.
Tudo mudou. Eu estava trabalhando em uma escola de negócios, como tradutora, e eles me demitiram pela pandemia. Então, fiquei sem emprego, mudei meus planos para o resto do ano, mas também acho que algumas coisas [mudanças] são boas também.
Admite que as questões que enfrenta na pandemia são distintas da experiência de outros migrantes que, por diversas razões, empreendem o regresso à Colômbia por meio de voos disponibilizados pelo Governo Federal. Com a rota área entre os dois países fechada por conta da COVID-10, são estas as únicas opções de saída do Brasil, sendo as passagens bancadas por quem opta em deixar o país e muito mais caras do que as viagens rotineiras de conexão entre essas nações. Sem dinheiro para retornar às cidades de moradia no Brasil ou comprar os assentos nos voos para a Colômbia, um grupo de pessoas acampou por semanas nas salas de embarque do Aeroporto Internacional de Guarulhos, esperando uma resolução para a questão.
Todos chegaram aqui [no aeroporto] porque o Governo anunciou uns voos humanitários. Quando você vê voo humanitário, você acha que é uma coisa de graça, que eles vão ajudar você e que eles são muito bons. Então, eles chegaram aqui no aeroporto, só para receber a notícia de que não eram voos humanitários. O único humanitário é que o Governo tinha solicitado ou tramitado os permissos [permissões] para que o voo pudesse sair do Brasil e chegar na Colômbia. É o único que eles fizeram. Mas o voo tinha que ser pago pelas pessoas e, na verdade, era um voo muito mais caro do que normalmente é um voo comercial. Então, eles chegaram lá e não tinha nem dinheiro, nem voo, nenhum jeito de voltar para a Colômbia e eles ficaram lá muito tempo, muitos meses. Até que, esta semana, eles puderam ir embora para Colômbia, muitos deles porque receberam ajuda. A gente fez uma vaquinha, muitos deles foram, muitos deles retornaram para suas cidades aqui no Brasil.
Indira exemplifica, também, a tensão em que se encontram pessoas que não são amparadas pelas instituições por morarem em cidades do Brasil onde não existem consulados colombianos para tramitar o passaporte. A entrevistada nota, mais uma vez, o tamanho continental do país como um desafio a mais para muitos migrantes nessa situação.
Ontem uma pessoa me escreveu que tinha um colombiano que nem tem passaporte... Ele mora em Minas Gerais. Então, ele precisa vir para tirar o seu passaporte, mas o Consulado não responde os seus e-mails, suas chamadas. Então, é muito difícil porque quase tudo está aqui em São Paulo. Tem outros dois consulados, um em Rio e outro em Manaus. Mas... Brasil é muito grande, Porto Seguro fica no outro lado do país...
Junto com outros juristas e advogados colombianos, Indira montou um grupo de pesquisadores que investiga os desdobramentos da situação de pós-conflito na Colômbia, dados os acordos de paz firmados entre o Governo e membros das FARC em março de 2016. Foi este grupo, aliado a outras organizações da sociedade civil, que levantou verba em um financiamento online para custear algumas passagens de translado humanitário. Apesar de formar parte da sua rede de apoio, nossa entrevistada destaca seu namorado como principal suporte que tem aqui no Brasil.
Eu acho que a minha maior rede de apoio é meu namorado, ele é da Colômbia da mesma cidade, mas, agora, faz um tempinho a gente começou um coletivo com um grupo de colombianos, que estudam aqui e que trabalham. E a gente [trabalha] conjuntamente para algumas atividades tem a ver com colombianos, a situação do pós-conflito na Colômbia. Então, a gente se apoia em algumas coisas, mas eu acho que não é uma rede de apoio muito grande para mim, porque eles e elas moram muito longe daqui, a gente quase não tem contato. Minha maior rede é meu namorado porque eu moro com ele aqui.
Esse apoio do namorado e a distância da família são pontos que destaca durante suas falas. Lembra da rede familiar que deixou na Colômbia e da importância que tal suporte tem no momento de se identificar com um lugar:
Porque você começa a sentir mais falta da sua família. Nesse tipo de situação, você acha que todo mundo tem a cidade, mas, quando você tá longe do seu país, você começa a sentir muita falta da família, das comidas, tudo. Então, tudo isso é mais... É maior. Acho que nós migrantes, porque não sei, todo mundo está ruim, mas, você se sente pior porque todo está ruim, mas você não está com a sua família, você não pode comer o que sempre come.
Ainda que a pandemia tenha trazido um toque de incerteza para sua vida, foi a partir dessa situação que conseguiu a reinserção profissional na sua área de formação. Atualmente, trabalha em regime de home office no setor jurídico de uma empresa de consultoria para hotéis e comenta que se existe algo de positivo a falar sobre esse período é sua mudança de trabalho.
Eu sei que é uma situação terrível, mas, para mim, me trouxe uma oportunidade para trabalhar como advogada, que só aconteceu pela questão da pandemia. Mas eu sei que é difícil para outras pessoas. Mas, para mim, pessoalmente, não está sendo tão difícil, na verdade. O mais difícil foi quando eu fui demitida, que eu falei: "nossa, não vou [arrumar] outro emprego nunca". Porque eu sou imigrante, porque estamos numa pandemia, eu achei que nunca, nenhuma coisa boa poderia acontecer.
Salienta que sabe que sua situação é distinta de outros migrantes que chegam à cidade sem apoio, que as dificuldades que enfrentam são parecidas – ainda que diferentes – e que é necessário estarmos abertos às novas histórias que, às vezes, se calam, quando as pessoas acreditam que "existem pessoas com experiências mais complicadas que a sua". Indira se mostra crítica também com o lugar-comum que homogeneíza a migração dentro da chave do sofrimento e das vulnerabilidades, apagando as escolhas pessoais e as diferenças do processo migratório:
Porque às vezes é como: "Não, por favor, fala da sua triste experiência". Porque eu sei que isso acontece muito. Eu sei, conheço muitas pessoas, trabalhei com muitas pessoas que tem uma experiência bem difícil de migração, mas a migração é diversa.
(...)
Os grupos de migrantes são tão diversos como tudo. Então, todas as experiências são diferentes. Conheço muitas pessoas para quem a pandemia foi bem mais difícil... Por isso, às vezes, fico um pouco receosa porque sei que minha experiência não é a experiência dos migrantes, por exemplo, que estão no aeroporto ficando lá. É outra experiência, mas é minha experiência e é dela que eu posso falar.
Foto da chamada: cidade de Pamplona, Colômbia. Crédito: climacobaila.