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Mobilidades familiares nas epidemias do Zika e do Coronavírus
Para preservar a saúde, para prevenir a doença e para remediar os danos, sempre gestores e profissionais de saúde incluem nas suas recomendações dispositivos explícitos e implícitos sobre a mobilidade da população. Como cada epidemia requer articulações diferentes de fatores para compreender como agir diante dela, tais recomendações sobre mobilidade também são muito variadas. Com a chegada da pandemia do coronavírus, do COVID-19, o mundo acompanha estarrecido a litania “fique em casa,” “stay at home”, para ver pela mídia as ruas vazias do mundo lá fora e se sentir cidadão correto por seguir as orientações impostas a partir das políticas internacionais guiadas tecnicamente pela Organização Mundial de Saúde. Ainda, cada país se isola dos outros através da suspensão de mobilidades internacionais.
O mais valorizado é o “isolamento social”, para não se contaminar, em nome de evitar o colapso da capacidade do sistema de saúde de atender aos doentes. Evidentemente, tal justificativa de organização dos serviços públicos e privados se reforça com uma aura humanitária. Assistimos a muitos agradecimentos sinceros às pessoas que cuidam dos doentes expostos ao imenso perigo de contágio próprio. Também assistimos aos aplausos dirigidos aos que adoeceram e conseguiram se recuperar após mergulhos profundos em UTIs, contribuindo com raios de esperança até para os acometidos com maior gravidade.
A imobilização do mundo é uma volta a práticas decameronescas, renovadas para os tempos de comunicação virtual global, para se esconder de uma doença letal transmitida nos atos cotidianos de relacionamento entre pessoas. Não contamos muito histórias um para o outro como aconteceu na obra de Boccacio, porque estamos interligados e com os contadores de histórias disponíveis em telas com mensagens produzidas alhures. Nós nos permitimos, inclusive, fantasiar sobre as voltas a um tempo idealizado de solidariedade, senão durante, talvez depois da pandemia, sem que saibamos como isto seria. Imobilizados, confinados, porém conectados e mobilizados e circulando num mundo de imagens e informações mundiais.
Na epidemia de Zika que brotou em 2015 os efeitos sobre a mobilidade foram extensos, mas muito diferentes e mais localizados. Desde 2016, acompanhamos estas famílias, e muitos desdobramentos sobre a mobilidade somente se apresentaram com mais força na fase de busca de atendimento para tratamento e terapia dos agravos sofridos por causa do vírus, transmitido através de uma picada de mosquito à mãe grávida, para o filho em formação, com impacto severo sobre seu desenvolvimento, primeiro notado frequentemente através da microcefalia no recém-nascido. Os filhos ficaram fragilizados por diversas sequelas, mas as mães insistem que eles não estão “doentes”, o atendimento necessário sendo de reabilitação em diversos aspectos. Usamos a nossa pesquisa, Etnografando Cuidados [1], para ver alguns dos muitos aspectos de mobilidade que a experiência da pandemia de COVID-19 traz.
Ressaltamos apenas dois aspectos que se relacionam estreitamente aos cuidados: 1) acesso a serviços de deslocamento de moradias para locais de tratamento, e 2) incluir/excluir integrantes da rede familiar para efetivar o cuidado [2]. Reflitamos sobre como cada uma destas práticas de mobilidade se relaciona com a nova pandemia de COVID-19, tomando em conta que estamos nas fases iniciais de chegada ao auge da pandemia, portanto, sem informações para além de especulações sobre futuras consequências.
Melhorar acesso a serviços de deslocamento de moradias para locais de tratamento
Na epidemia de Zika, esta mobilidade de casa para os locais de tratamento é atendida por programas governamentais de TFD – Tratamento Fora do Domicílio - para quem não mora na Região Metropolitana. É atendida por vales gratuitos no sistema de transporte público e eventual uso de programas especializados de transporte de cadeirantes pelos que residem na Região Metropolitana. Em ambos os casos, submete as mulheres e crianças a uma rotina de “ficar fora de casa” por longas horas, independentemente de onde residam. Frequentemente requer complementações com serviços pagos (alimentação, transporte auxiliar). Houve mães do interior que vieram morar na região metropolitana para evitar as longas jornadas no TFD e nas casas de apoio, deixando alguns familiares para trás, e trazendo outros para residir juntos. O estabelecimento de novos centros de reabilitação com capacidade de um ou outro dos múltiplos atendimentos mais dispersos pelo estado foi uma política adotada para diminuir as necessidades de tantos deslocamentos ou mudanças de residência, mas isto ocorreu dentro das limitações significativas de disponibilidade de orçamento, infraestrutura e especialistas.
Na pandemia de COVID-19, tais práticas de mobilidade são impensáveis por várias razões. Na epidemia do Zika, a contaminação foi um fato estabelecido através de um adoecimento com manifestações leves durante a gestação e com os efeitos descobertos em torno do nascimento do filho. Na COVID-19, o adoecimento é “assintomático” com frequência, mas tem um lado de alta letalidade que faz com que seja uma ameaça na hora em que a pessoa infectada sofra de graves consequências no sistema respiratório. Isto não ocorria com a Zika. Mosquitos proliferam em alguns ambientes, pessoas têm interação em quase todos os ambientes! Uma mobilidade não somente entre unidades de saúde, mas em qualquer local de “aglomeração”, provoca contato com outras pessoas, podendo levar a pessoa a adoecer seriamente e o sistema de saúde não ter condições de atender uma quantidade grande de pessoas requerendo cuidado. A solução de “ficar em casa” é uma estratégia de deixar para se expor depois, quando tem mais pessoas imunizadas, e tenha diminuído a demanda nas unidades de terapia intensiva existentes e complementadas por outras unidades transitórias diante de previsões de altos números de contaminação.
Incluir/excluir integrantes da rede familiar para efetivar o cuidado
Na epidemia de Zika, as mães assumem a responsabilidade de cuidar dos filhos com Síndrome Congênita do Zika (SCZ), e é frequente resultar na intensificação de processos de inclusão e exclusão de pessoas na reorganização da divisão de trabalho de cuidado com as outras mulheres da sua rede de relacionamentos como avós, mães, sogras, tias, irmãs, cunhadas, filhas mais velhas, amigas, e, com atenção especial e problemática, com o companheiro, pai do filho. Como o cuidado de um filho deficiente exige sensibilidades específicas e provoca práticas de rejeição ou incompreensão de muitas pessoas, mesmo mais próximas, reflete nas escolhas dessas mães de com quem vão contar para ajudar com o filho. Esta prática cria uma espécie de circulação muito restrita de pessoas da rede familiar em torno dele. Então, a exclusão e inclusão de pessoas nessas redes familiares tendem, de um lado, ao super-envolvimento de um número limitado de pessoas que se sacrificam em nome do filho, e, de outro, à formação de um grupo de parentes com quem quase não se relaciona mais. No caso do Zika, esta prática se complementa por uma participação em associações e instituições organizadas em torno do que Paul Rabinow chamou de “bioidentidades”, criando uma inserção em atividades lúdicas, terapêuticas, caridosas e de reivindicação, fazendo com que a rede “entre mães” ganhe uma importância como complemento do que se perdeu na relação entre familiares e que insere as mães num contexto de afirmação de cidadania bastante forte [3].
Quando se pensa em COVID-19, a decisão de isolar as famílias veio verticalmente, e não de integrantes da rede familiar. De fato, permite muitas brechas contraventoras de intercomunicação pessoal presencial com muitas diferenças, sobretudo de acordo com classe social. As famílias mais abastadas decidem entre se isolar na residência na cidade e a outra que têm para fins de semana e férias, viajando “isoladamente” nos seus veículos. Os moradores de bairros populares não costumam dispor de tais alternativas, nem de poder separar tão nitidamente o espaço da moradia de uma família da outra. São estas ruas que aparecem nos meios de comunicação como as que têm as pessoas que desobedecem as regras de isolamento social. A responsabilidade da disseminação desenfreada de uma doença veiculada como tendo sido introduzida por viajantes abastados provenientes do estrangeiro, cai nas costas de residentes de bairros populares cujas dificuldades de isolamento social obediente são muito mais marcantes.
Não conheço (ainda!) associações dos que adoeceram de COVID-19, e sim uma rede ampla, global, variada e solidária que procura aliviar o sofrimento gerado pela imobilização necessária para prevenir contra a contaminação pela doença. A população mais marcada são os idosos por causa dos índices maiores de letalidade nos que se contaminam. Precisam ser isolados (quando as condições sociais permitem) para demonstrar o amor, carinho e gratidão que filhos e netos têm por eles! A comunicação através de celulares e telas maiores unifica essas famílias cujas redes de apoio presenciais precisaram ser encolhidas.
Não dá para saber as consequências do processo de “agora pode sair das suas casas”, nem quando isso vai ocorrer, mas certamente criará mais um capítulo de desafios entre como reorganizar novas mobilidades para atendimento, pois não se sabe nem se haverá novos surtos de contaminação localizados ou generalizados, nem outras sequelas que requerem atenção como no caso da Zika, e a reorganização de redes familiares certamente continuará sensível às recomendações de usar a mobilidade para preservar saúde.
Parry Scott é antropólogo e professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia na Universidade Federal de Pernambuco, e Coordenador do Núcleo de Família, Gênero e Sexualidade (FAGES)
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
[1] Scott RP, Lira LC, Matos SS, Souza FM, Silva ACR, Quadros, MT. Itinerários terapêuticos, cuidados e atendimento na construção de ideias sobre maternidade infância no contexto da Zika. Interface (Botucatu). 2018; 22(66): 673-84. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v22n66/1807-5762-icse-22-66-0673.pdf
[2] SILVA, Ana Cláudia Rodrigues da; MATOS, Silvana Sobreira de; QUADROS, Marion Teodósio de. Economia Política do Zika: Realçando relações entre Estado e cidadão. Revista ANTHROPOLÓGICAS 28(1):223-246, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaanthropologicas/article/view/231440
[3] Scott, Parry e Lira, Luciana. Etnografando Cuidados: Mulheres Contam as suas histórias - https://vimeo.com/407994903.
A ocupação "Cientistas sociais e o Coronavírus" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) para divulgação de artigos selecionados do boletim homônimo, iniciado em março de 2020. Os textos podem ser consultados, também, em formato de ebook. Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.