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Mobilidade Humana e Coronavírus - Coronavírus: O fechamento das fronteiras não é, e nem deve ser, absoluto
O objetivo legítimo de controlar a propagação do contágio e proteger a saúde não suspende a obrigação dos Estados de ponderar os direitos fundamentais em jogo. A primeira característica dessa crise é sua natureza global e não pode ser enfrentada apenas dentro de cada território nacional. As zonas de fronteira são particularmente vulneráveis às políticas aplicadas tanto de um lado como do outro. É urgente que os Estados coloquem o princípio da solidariedade entre os povos no centro e resgatem os mecanismos de coordenação regional.
Restringir a mobilidade das pessoas está entre as principais medidas recomendadas frente à pandemia do COVID-19, segundo a OMS e as autoridades de saúde em todo o mundo. Trata-se de determinações que objetivam desde reduzir a circulação nas ruas até limitar a circulação entre países. Essas são medidas necessárias e urgentes do ponto de vista da saúde pública, que evidenciam, ao mesmo tempo, a deterioração já em andamento dos sistemas de proteção social na região. No caso dos migrantes, o fechamento das fronteiras impacta de maneira diferenciada aqueles com menos recursos simbólicos e materiais. É por isso que é essencial implementar medidas que reduzam esse impacto.
Nesse contexto, no começo de abril, cerca de 20 famílias da Colômbia e Venezuela que viajaram por dias para chegar à fronteira com a Argentina encontraram as vias de passagem fechadas e hotéis com restrições para acomodar estrangeiros. No grupo havia crianças e adolescentes, mães solteiras com filhas e parentes de migrantes que já moravam na Argentina. Com poucos recursos, eles foram deixados na rua. Diante dessa situação de vulnerabilidade, especialmente devido ao risco de contágio por coronavírus ou dengue, as autoridades decidiram, como exceção, permitir que entrassem e procurassem meios que lhes permitissem cumprir com as regras de isolamento, contando com a assistência de organizações sociais e agências das Nações Unidas que trabalham nas fronteiras. Situações como essa estão acontecendo em toda a região.
Às medidas iniciais que restringiam a chegada de pessoas provenientes de países com alto risco de contaminação se somaram às medidas mais extremas de fechamento de fronteiras, especialmente as vias de acesso terrestre com países vizinhos. A Colômbia foi uma das primeiras em adotar esse tipo de ação, no dia 14 de março, na fronteira com a Venezuela. Entre os dias 16 e 17, Equador, Peru e Argentina anunciaram e executaram o fechamento total de suas fronteiras. Chile, Brasil e Bolívia seguiram essa decisão nos dias 18 e 19 de março. Naquele momento, o Brasil já havia decretado o fechamento da fronteira com a Venezuela antes do fechamento geral.
Embora a situação se apresente como provisória, trata-se de uma situação extrema e sem precedentes, que gera questões práticas e políticas. A primeira diz respeito aos impactos imediatos que essas medidas terão, levando em consideração o volume e a natureza constante dos fluxos inter-regionais. Desde o final do século XX, 60% da migração na América do Sul provêm de países da região. O fluxo de colombianxs com necessidade de proteção que se deslocam pela região não cessou desde os anos 2000, além do fluxo de venezuelanxs que aumentou nos últimos anos.
O fechamento absoluto das fronteiras pode violar os direitos dxs migrantes e grupos específicos. Ao mesmo tempo, nos deixa mais vulneráveis a todxs. As medidas sanitárias preventivas partem de um princípio básico de que, para que funcionem, devem cobrir a todxs, sem deixar ninguém de fora. Uma vez proibida a entrada, quem garantirá que as pessoas que não puderam atravessar cumpram as medidas sanitárias preventivas, já seja no país de origem ou de trânsito? As fronteiras terrestres são linhas imaginárias e, na América Latina, além de tudo porosas: existem inúmeros pontos de travessia irregulares. O fechamento das fronteiras políticas não implica, portanto, o fim da migração e reduz a capacidade do Estado de acompanhar esses grupos.
Os impactos concretos das medidas restritivas para conter o avanço do coronavírus provavelmente só serão compreendidos quando a crise passar. Porém, podemos pensar em algumas hipóteses para implementar exceções que, protegendo os migrantes, protegem a todxs nós.

Os vínculos com o país de destino e a residência de fato
A mãe de um migrante venezuelano que já vive no Brasil não pôde entrar nesse país porque não acessou a tempo a informação sobre o fechamento das fronteiras. Foi no dia 18 de março, quando a medida entrou em vigor. No dia 22 de março, o Ministério da Justiça do Brasil ordenou o fechamento da fronteira com o Uruguai, especificando a exceção a essa regra para migrantes sem permissão de residência, mas que tivessem tentando efetuar a união familiar com brasileirxs. Esta disposição deveria ser estendida e aplicada a todo o fechamento de fronteira, para que situações como a desta migrante não se repitam.
A Colômbia isentou do impedimento de entrada as crianças que podem provar que estudam nas escolas colombianas. Apesar de a medida permitir assegurar garantias para algunxs migrantes transfronteiriçxs e aquelxs que se encontram em situação irregular, não é suficiente.
Ao mesmo tempo, Brasil e Argentina isentaram do fechamento xs seus próprixs nacionais e xs residentes do país de destino. O status regular dx migrante se torna central. Finalmente, a Argentina restringiu o ingresso inclusive de seus nacionais e migrantes com residência. No entanto, mesmo nos casos mais favoráveis, xs migrantes em situação irregular não poderão entrar, nem xs que já estão na fronteira nem xs que têm uma necessidade urgente de deixar seu país e/ou encontrar suas famílias.
Essa definição é preocupante porque os Estados da região têm dificultado ou demorado a implementação de medidas de regularização migratória; uma situação que nos últimos anos significou um aumento do número de migrantes que vivem em situação irregular. A Colômbia passou quase um ano sem um programa de regularização para xs venezuelanos. Chile, Peru e Equador, com o objetivo de dissuadir a entrada, instituíram programas inacessíveis mediados pela exigência de vistos para a entrada de pessoas da Venezuela. A Argentina vinha implementando um sistema de regularização on-line desde janeiro de 2019 que dificultava o acesso dxs migrantes com menos recursos, embora desde fevereiro de 2020 as autoridades migratórias tenham começado a fazer ajustes para modificar essa situação.
Ainda que um dos problemas da irregularidade seja justamente a dificuldade de dimensioná-la, nesse contexto político e institucional existem numerosos casos de migrantes que vivem há anos em países da região, mas que não conseguem provar sua residência regular. Muitxs deles permanecerão em áreas de fronteira, expostxs a sérias vulnerabilidades. Xs agentes de fronteira precisam aceitar outras evidências de vínculos com o país, como a existência de familiares, ou outros elementos que demonstrem uma residência de fato.
Possíveis abusos no controle migratório
As medidas de fechamento de fronteiras também habilitam - em alguns países mais explicitamente do que em outros - xs agentes migratórios, as forças de segurança e, em alguns casos, autoridades provinciais e municipais, de impedirem a entrada e a permanência de migrantes no país. Alguns, como no Brasil, habilitam a deportação imediata. Na Argentina, agentes da autoridade migratória nacional realizaram inspeções nas casas e hotéis onde havia pessoas vindas do exterior, de países identificados como de risco.
Embora sejam decisões baseadas em medidas provisórias de emergência sanitária, é importante reconhecer que esse contexto possibilitou novos níveis de vigilância e controle migratórios. O objetivo legítimo de controlar a disseminação do contágio e proteger a saúde não suspende a obrigação dos Estados de realizar, em todos os casos, um exercício de ponderar os direitos fundamentais em jogo.
Em Jujuy, província da região norte da Argentina, o governo solicitou na justiça a expulsão de dois migrantes. A justiça autorizou as expulsões com base na decisão de fechar as fronteiras, mas a Direção Nacional de Migrações considerou que a expulsão não poderia ser realizada devido à situação humanitária dxs envolvidxs e ao fechamento de fronteiras também determinado pela Bolívia. Esse mesmo governo provincial exigiu que os hotéis expulsassem migrantes que já haviam entrado no país antes do fechamento da fronteira, sem considerar que muitos deles tinham necessidades de proteção internacional. O ativismo de outros funcionários e organizações que trabalham na fronteira conseguiu modificar a medida e os migrantes puderam retornar ao seu alojamento.
Alguns dias depois, a autoridade migratória argentina emitiu uma medida ampliando os prazos para as residências precárias e também realização dos tramites migratórios. Suspende, ao mesmo tempo, todas as ordens de intimação e expulsão, uma medida importante para proteger os direitos, reduzir a incerteza e garantir a implementação de medidas preventivas de saúde coletiva.
Prevenir a xenofobia
As medidas tomadas por governos em todo o mundo, e também, de alguma forma, os meios de comunicação, particularizaram e contribuíram para a estigmatização de certas nacionalidades em relação ao coronavírus. Por exemplo, pessoas de origem brasileira e chinesa relataram situações de xenofobia nos edifícios em que já viviam por anos em Buenos Aires.
Essa nova situação surge em um contexto de níveis crescentes de xenofobia dos últimos anos. Na região, os discursos de algumas autoridades estatais vincularam a migração ao crime e até culparam os migrantes por sobrecarregar os sistemas de saúde e de educação. Em muitos casos, esses discursos foram acompanhados de medidas concretas, como a adoção de vistos para certas nacionalidades e o aumento de expulsões.
Como o Tribunal Constitucional do Equador afirmou no dia 19 de março deste ano, o fechamento das fronteiras não é absoluto. Após a decisão de fechar suas fronteiras, os Estados da região devem ajustar essas medidas aos casos específicos para a proteção de todxs. É necessário especificar as exceções - isto é, estabelecer critérios de prevenção e assistência à saúde, bem como proteção de direitos no caso de pessoas em situação de rua, pessoas que precisam de proteção internacional, as necessidades da unidade familiar e o interesse superior da criança. Ao mesmo tempo, é importante, em uma situação excepcional, como a atual, manter mecanismos de controle contra possíveis abusos por parte das autoridades migratórias, de fronteira e policiais.
Em tempos de crise, solidariedade entre os povos e integração regional
A pandemia de COVID-19 apresenta grandes desafios para os Estados da América Latina. O fechamento das fronteiras é uma das medidas extremas impostas pela emergência sanitária como forma de achatar rapidamente a curva de contágio em um contexto de déficit estrutural no financiamento dos sistemas de saúde.
No entanto, uma coisa é o fechamento de fronteiras, e outra muito distinta é essa mesma medida tomada unilateralmente por cada Estado, sem se preocupar com a vida das pessoas que permanecem nessa área de fronteira. Por isso, é necessário estabelecer um mecanismo específico de avaliação, na entrada ou na saída das pessoas, para que possam ser realizadas medidas de isolamento social.
Além disso, os espaços de integração regional institucionalizados, como o Mercosul, oferecem a possibilidade de buscar respostas nos acordos regulatórios ainda em vigência. A ativação desse mecanismo permitiria construir respostas comuns à emergência. Especificamente, uma diretriz unificada sobre critérios de exceção que permitam abrir a fronteira em casos específicos pode ser necessária para evitar violações de direitos e garantir a eficácia das medidas sanitárias adotadas em cada um dos países. Além disso, as autoridades de todas as áreas do governo devem se comprometer a proteger as pessoas sob suas jurisdições, inclusive em áreas fronteiriças, independentemente de sua nacionalidade ou status migratório.
A primeira característica dessa crise é sua natureza global e não pode ser enfrentada apenas dentro de cada território nacional. As áreas fronteiriças serão particularmente vulneráveis às políticas aplicadas em ambos os lados. É urgente que os Estados coloquem o princípio da solidariedade entre os povos no centro e resgatem os mecanismos de coordenação regional.
*Uma versão em espanhol deste texto foi publicado originalmente no site Latfem.
Camila Barretto Maia coordena a Equipe Internacional do Centro de Estudos Jurídicos e Sociais (CELS), uma organização de direitos humanos na Argentina com uma ampla agenda. É formada em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e possui mestrado em Gestão e Políticas Públicas pela Fundação Getúlio Vargas.
Raísa Ortiz Cetra faz parte da Equipe De Trabalho Internacional do CELS. É formada em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo, com pós-graduação em Direitos Humanos, Migração e Asilo pela Universidade Nacional de Lanús (UNLa / Argentina).
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.