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Peça a peça: máquinas fotográficas e o registro das experiências vividas
No ano de 2019, o núcleo de pesquisa do Museu da Imigração veio trabalhando com a temática dos registros e relatos de viagens realizados pelos migrantes durante sua experiência de deslocamento. Ao pensarmos em registros de viagens pode ser que o relato escrito seja a primeira ideia que nos venha a mente. A caneta e o papel, no entanto, não são as únicas ferramentas possíveis para a realização de um registro; o texto escrito tampouco sua única forma. Registros também são desenhos, são gravações de áudio ou de vídeo. São palavras transmitidas pela oralidade ou sons reproduzidos por instrumentos. As possibilidades de como registrar a experiência da migração são inúmeras. As trocas culturais aí envolvidas, por sua vez, podem ser uma fonte de compreensão de diversidades e seus contextos específicos.
Devemos ter em mente que a ferramenta e a forma de um registro está sempre condicionada a seu momento na história e seu espaço na geografia. O acervo do Museu da Imigração, por exemplo, apresenta um recorte bastante restrito tanto em termos de temporalidade quanto espacialidade, já que a maior parte de seus objetos são de meados do século XX, tendo transitado majoritariamente entre Europa e Brasil. São peças que passaram pelas mãos de migrantes, de seus descendentes e, por fim, encontram-se sob os cuidados de um museu; elas ajudaram a construir mundos e a interpretar novas realidades, criando narrativas variadas, a partir de cada experiência. Hoje, nos fazem refletir sobre os limites entre ficção e realidade e a importância da memória registrada na história das migrações.
Dentre esses objetos, encontramos um conjunto relativamente grande de câmeras fotográficas. São cerca de 30 peças, de proveniências distintas. As informações que possuímos sobre sua doação são escassas, mas com base em uma breve pesquisa conseguimos identificar algumas questões referentes aos modelos e datação dos mesmos: estamos tratando de câmeras de fole, câmeras box, câmeras reflex, câmeras de duas lentes, câmeras automáticas e Polaroid.
As possibilidades de aproximação são inúmeras: podemos nos enveredar pela história da fotografia no Brasil, a evolução de suas técnicas e modelos, bem como a relação do fotografo com seus instrumentos de trabalho. Quando tratamos de registros de uma viagem, algumas particularidades são importantes: a utilização não profissional das mesmas, para uso pessoal, como fonte de memória e recordação ou mesmo de comunicação com outras pessoas ou gerações futuras. A visualidade é um aspecto interessante dos registros pois, ao contrário dos textos, trazem uma carga de realidade muito maior para o receptor/observador. A durabilidade do registro fotográfico, no entanto, pode variar muito de acordo com as condições de preservação das fotografias, qualidade do equipamento, do filme etc.
A máquina que registra uma experiência pessoal também faz parte da história do migrante. Pela necessidade do transporte, são, em geral, mais portáteis e simples. Dentre nossas peças, algumas apresentam o nome de seu doador, como é o caso desses dois exemplares:
A primeira delas é uma box da marca Kapsa, confeccionada em metal e couro na cor preta, com formato retangular e bordas arredondadas; possui lente em formato circular na parte frontal e painel com botões na lateral direita – foi doada por Jacira Flores Riccomi, tendo pertencido a Jarbas Riccomi, pai da doadora.
Apelidada “Pintinha vermelha”, a câmera aparece em panfletos publicitários pelo menos desde a década de 1950, sendo bastante provável que a sua fabricação e comercialização tenha se iniciado neste mesmo período em São Paulo. Trata-se de uma das primeiras do gênero produzida nacionalmente e impactou fortemente na popularização da própria prática fotográfica. O flash era acoplável lateralmente e, originalmente, podia ser guardada em uma capa protetora. Vendida como resistente aos impactos e quedas, trazia segundo um dos panfletos “todos os aperfeiçoamentos das máquinas de alto custo numa câmera box”.
A segunda é uma Pentax automática, confeccionada em metal e plástico, na cor preto e prata. Sua lente é circular na parte frontal e possui botões na parte superior, sendo seu formato mais próximo dos que conhecemos hoje em dia, embora não tenha nenhuma datação registrada – esta foi doada por Selma Nanami Goto, junto com uma bolsa de couro preto com alça presa por argolas de ferro; o conjunto pertenceu ao seu pai, Tooru Goto.
Esse último modelo, a Spotmatic da década de 1960, faz parte de uma série produzida pela empresa japonesa Asahi Optical e Co. Oferecia como diferencial ser uma câmera reflex monobjetiva, disponibilizando através do visor uma imagem mais exata daquilo que seria capturado. Um dos aspectos decisivos era o seu baixo custo, principalmente comparado às equivalentes produzidas em países europeus.
Cada uma em seu contexto histórico, as câmeras indicam momentos de popularização da prática fotográfica. Demandando menor conhecimento e habilidade técnica, aprofundaram o lema das primeiras máquinas box Kodak, “apenas aperte o botão”. Historicamente, essa maior facilidade de manejo, associada à acessibilidade econômica, teve, dentre vários desdobramentos, a transformação da fotografia em uma das aliadas principais das famílias na construção de seus próprios registros. Se antes a necessidade de um estúdio ou a presença de um profissional restringia o acesso dessa prática às camadas mais abastadas, ou mesmo a confinava aos momentos marcantes da biografia pessoal e/ou familiar, as câmeras aqui discutidas abriram caminho para uma prática de registro mais cotidiano.
Das considerações feitas até aqui, podemos nos perguntar então como as máquinas fotográficas incidiram no modo de lembrar vinculado à migração. Acessando um ambiente mais “íntimo”, objetos como a Kapsa ou a Pentax participaram de diferentes momentos e etapas da vida familiar, deixando às gerações futuras os rastros para a construção de memórias. É com esses indícios que os relatos familiares e migratórios podem se constituir, espraiando-se a outros domínios e vivências migratórias. Desse modo também podemos nos perguntar sobre o vínculo de outros objetos do acervo do Museu da Imigração com a memória familiar. O armário do avô italiano, a máquina de costura da avó espanhola, as fotografias: as histórias que circulam sobre a migração e os objetos postos a representa-las invariavelmente tem como eixo importante a família. Como isso ocorre? Como determinados modos de registrar passam a organizar um modo de relembrar? Essas são perguntas que podemos seguir fazendo através dos objetos e seus vínculos com as migrações.