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Migrações e COVID-19: Quando o discurso securitista ameaça o direito à saúde
A crítica situação econômica e política da Venezuela tem gerado um processo de emigração sem precedentes na região latino-americana. De acordo com a Plataforma de Coordenação para Refugiados e Migrantes da Venezuela, coordenada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e pela Organização Internacional para as Migrações (OIM)[1], até março de 2021, havia 5.600.000 pessoas refugiadas e migrantes desse país no mundo, das quais 4.600.000 estão na América Latina e no Caribe. Ou seja, 82% dos que emigraram da Venezuela têm como principal destino algum país da região. Embora exista uma forte concentração de refugiados e migrantes venezuelanos em, pelo menos, quatro países (Colômbia, Peru, Chile e Equador), a verdade é que todos os países têm sido receptores dessa população em maior ou menor proporção.
Nos últimos anos, as condições de saída dessa emigração têm variado significativamente. Se, há um tempo atrás, ter recursos econômicos era um fator determinante no tipo de viagem que se realizava (por avião ou por terra), hoje, ter um documento que permita a entrada regular em um país tornou-se o fator decisivo para se fazer uma viagem com relativa tranquilidade. E é, justamente, o aumento das exigências dos documentos para se deslocar pelo continente o que faz com que essa migração enfrente uma das piores crises humanitárias. As dificuldades para obter documentos, que permitam a saída da Venezuela (passaportes, certidões de nascimento e autorizações notariais, entre outras), somam-se às dificuldades na obtenção de um visto que permita entrar em outro país. No caso do Chile, a ausência desses papéis produz uma total falta de proteção em termos de direitos humanos [2][3].
O aumento dos requisitos de entrada (por exemplo, visto consular de turismo ou de trabalho), o maior controle nas fronteiras, o aumento das expulsões por renda irregular e a resistência ou dificuldades em reconhecer as necessidades de proteção internacional dessa população enquadram-se em uma perspectiva securitista e de controle migratório, que tem como consequência imediata o aumento de pessoas em situação irregular [4][5].
A pandemia e as suas consequências sanitárias, econômicas, sociais e políticas provocam um cenário ainda mais complexo. À medida que a crise econômica na Venezuela se agravava a níveis dramáticos, os países da região fechavam as suas fronteiras como estratégia para reduzir a propagação do vírus. Essa medida afetou, principalmente, as fronteiras terrestres e, em menor medida, as fronteiras aéreas que puderam continuar operando com diferentes níveis de controle e segurança. O fechamento das fronteiras terrestres prejudicou, evidentemente, a mobilidade de refugiados e migrantes.
A situação no Chile faz parte das tendências observadas na região, em um cenário político marcado por um processo constituinte após o estallido social[6] de outubro de 2019 e os efeitos da pandemia COVID-19 em 2020 e 2021. O estallido social de outubro de 2019 condensou as críticas ao sistema econômico neoliberal que se impôs durante a ditadura e se consolidou durante os governos da coalizão de centro-esquerda nos anos posteriores à recuperação da democracia em 1990. O slogan "não são 30 pesos, são 30 anos" reflete o esgotamento de um modelo econômico que se sustenta na desigualdade social.
O governo, no entanto, respondeu a essas mobilizações por meio da força policial e da restrição das liberdades individuais. A imposição do toque de recolher, a presença de militares e das forças especiais nas ruas e nos espaços públicos foi o contexto em que a pandemia teve início em março de 2020.
A pandemia permitiu ao governo aumentar as restrições à mobilidade (o Chile esteve sob toque de recolher durante dois anos, de outubro de 2019 a setembro de 2021). O argumento sanitário foi usado para manter as fronteiras terrestres fechadas até hoje (outubro de 2021). No entanto, também implicou propor medidas de saúde pública baseadas em um princípio universal de direitos. O processo de vacinação foi abordado com a mesma lógica, estabelecendo idade, doenças crônicas e serviços essenciais como critérios para definir o calendário nacional de vacinação. Em um país onde o nível da renda determina o tipo de saúde a que se tem acesso, o encontro de diferentes setores socioeconômicos nas clínicas municipais teve um significado especial no contexto das demandas e mobilizações sociais.
Assim, a forma como a COVID-19 foi abordada na população migrante inscreveu-se na tensão entre as políticas de securitização, criminalização e exclusão da migração e a necessidade de abordar a saúde pública a partir de uma lógica universal de direitos. A incorporação de uma abordagem universalista permitiu a implementação de uma série de medidas individuais e sociais de prevenção, diagnóstico e tratamento, incluindo, por exemplo, as residências sanitárias disponíveis para todos os que dela necessitem e o programa nacional de vacinação sem nenhum tipo de exclusão, exceto turistas. No entanto, ficou evidente uma série de entraves estruturais no acesso à saúde de diferentes comunidades em nosso país, especialmente de minorias sociais, que dificultam a sua proteção contra a COVID-19 e a capacidade de abrandar os seus efeitos sociais[7]. Esses entraves estão vinculados, por um lado, às lacunas sistemáticas no acesso e no uso efetivo dos serviços sanitários que o sistema de saúde chileno possui e que afetam a população como um todo. Por outro lado, se referem às condições decorrentes da própria situação migratória, como a falta de documentos, discriminação no atendimento por parte dos agentes de saúde, medo de procurar assistência por estar em situação irregular, maior concentração de empregos com condições de trabalho mais precárias e mais expostas ao contágio, níveis elevados de superlotação, entre outros[7].
Diante da lógica universalista que tem prevalecido na área da saúde – e que busca atender sem exceções, mas que encontra limitações em decorrência de entraves estruturais – se contrapõe a visão de segurança e controle presente em uma série de medidas adotadas ao longo de 2020, as que mantêm uma continuidade com aquelas adotadas em anos anteriores[8][9][10].
Ambas as abordagens estão presentes na relação que o Estado mantém com a população migrante durante a pandemia. Infelizmente, a proteção dos direitos das pessoas migrantes em situação irregular só adquiriu certa visibilidade no âmbito sanitário, sem transpor essa aproximação para outros âmbitos da vida. Um exemplo muito concreto é o aumento das travessias irregulares em Colchane, na fronteira do Chile com a Bolívia. A escassa assistência prestada pelas autoridades, como o translado de ônibus da fronteira para a cidade de Iquique (cerca de 200 km de distância) e a possibilidade de realizar a quarentena em uma residência sanitária, ficou sujeita à exigência de uma autodenúncia a ser feita por quem atravessou por lugares não autorizados pela a polícia de investigação. O problema é que essa autodenúncia abre um processo de deportação.
Em nosso artigo "Migraciones y COVID-19: Cuando el discurso securitista amenaza el derecho a la salud" buscamos analisar essas perspectivas e compreender como elas impactam a população venezuelana no Chile. Enfocamos o caso venezuelano porque representa, hoje, 30% da população estrangeira no Chile e por ter sido um dos focos das medidas implementadas pelo Estado no ano passado. Esse artigo é resultado de diferentes projetos de pesquisa em que as autoras participaram: 1) Inserção sociolaboral da população venezuelana no Chile (Konrad Adenauer); 2) Rotas e trajetórias de migrantes venezuelanos na América do Sul. Quando as portas começam a fechar (FONDECYT-Regular Nº1201130, 2020-2024); 3) Sistematização da Resposta Sanitária dos Países Andinos à Migração Venezuelana: O Caso do Chile (United Kingdow Research and Innovation – UKRI) e 4) Migrantes durante a pandemia. A imobilidade nas margens da inclusão (projeto minicoes, COES, ANID / FONDAP / 15130009).
Carolina Stefoni é socióloga, formada pela Pontificia Universidad Católica de Chile, Mestre em Estudos Culturais, pela Universidade de Birmingham, e doutora em Sociologia pela Universidad Alberto Hurtado. É acadêmica da Universidad de Tarapacá-Chile.
Báltica Cabieses é professora titular, diretora do Programa de Estudios Sociales en Salud, do Instituto de Ciencias e Innovación en Medicina, da Facultad de Medicina Clínica Alemana, da Universidad del Desarrollo (Chile). Doutora em Ciencias de la Salud, epidemiología social pela Universidad de York (Reino Unido).
Alice Blukacz é pesquisadora, no Programa de Estudios Sociales en Salud, do Instituto de Ciencias e Innovación en Medicina, da Facultad de Medicina Clínica Alemana, da Universidad del Desarrollo (Chile), e no MSc Migración Internacional y Políticas Públicas de la London School of Economics (Reino Unido).
Tradução: Aline Lopes Murillo.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências
[1] Situación Repuseste a los Venezolanos, https://r4v.info/es/situations/platform.
[2] ACNUDH. (2019). Informe de la Alta Comisionada de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos sobre la situación de los derechos humanos en la República Bolivariana de Venezuela. (Informe anual de la Alta Comisionada de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos e informes de la Oficina de la Alta Comisionada y del Secretario General A/HRC/41/18). Naciones Unidas.
[3] Freitez, A. (2019). Crisis humanitaria y migración forzada desde Venezuela. En L. Gandini, F. Lozano, & V. Prieto (Eds.), Crisis y migración de población venezolana. Entre la desprotección y la seguridad jurídica en Latinoamérica. (pp. 33-58). Universidad Nacional Autónoma de México.
[4] Domenech, E. (2020). La «política de la hostilidad» en Argentina: Detención, expulsión y rechazo en frontera. Estudios Fronterizos, 21.
[5] Stang, F., & Lara, A. (2020). Retórica humanitaria y expulsabilidad: Migrantes haitianos y gobernabilidad migratoria en Chile. Si Somos Americanos. Revista de Estudios Transfronterizos, XX(1), 176-201.
[6] Estallido social é como foi chamada uma série de protestos ocorridos de outubro de 2019 a março de 2020 no Chile. Uma possível tradução poderia ser "eclosão social". (N.T.)
[7] Cabieses, B., Larenas, D., Oyarte, M., & Darrigrandi, F. (2021). Proyecto de Sistematización de la Respuesta Sanitaria de los Países Andinos ante la Migración Venezolana. El caso de Chile. Universidad del Desarrollo, Unuversidad Cayetano heredia, UK Research and Innovation, Universidad Javeriana.
[8] Freier, L. F., & Vera, M. (2021). COVID-19 and Immigrants' Increased Exclusion: The Politics of Immigrant Integration in Chile and Peru. Frontiers in Human Dynamics, 3.
[9] Stefoni, C., & Brito, S. (2019). Migraciones y migrantes en los medios de prensa en Chile: La delicada relación entre las políticas de control y los procesos de racialización. Revista de Historia Social y de las Mentalidades, 23(2), 1-28.
[10] Vásquez, J., Finn, V., & Umpierrez, S. (2021). Cambiando la cerradura. Intenciones legislativas del proyecto de ley de migraciones en Chile. Colombia Internacional, 106, 57-87.
Crédito foto da chamada: Pablo Mardones. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito OCUPAÇÃO "REVISTA SIMBIÓTICA" em branco.
A ocupação "Revista Simbiótica" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e o periódico homônimo da série, da Universidade Federal do Espirito Santo (Ufes), para a divulgação das reflexões e contribuições do dossiê "A pandemia e a crise internacional das mobilidades humanas", publicado em agosto de 2021. Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.