Blog
Compartilhe
Mobilidade Humana e Coronavírus: “Fico pensando num imigrante que está começando a morar na Europa nesse exato momento”
Por Guilherme Ramalho
Entrevistamos Ricardo no fim de março, momento em que as medidas restritivas na França entravam em sua terceira semana. Hoje, 29 de maio, acompanhamos os países do bloco europeu afrouxando as restrições com a diminuição de casos, permitindo a volta da circulação nas ruas, em horários determinados e evitando ao máximo o contato social. É importante frisar que a série não foi pensada como uma atualização da situação pandêmica, mas uma forma de comunicar a experiência de pessoas que não estão em seu lugar de origem e passam por experiências semelhantes.
França, 14 de março de 2020
Ricardo (41 anos) se lembra bem do discurso de Emmanuel Macron no começo da noite do dia 14 de março. Na França, a vida seguia uma aparente normalidade, ainda que o aumento de casos fosse o assunto corrente e os casos na Itália e na Espanha assustassem. As saídas já haviam diminuído, as pessoas se protegiam mais do que o rotineiro, mas foram as palavras do presidente que materializaram o sentimento difuso em milhares de lares franceses:
"Cada um deve limitar a todo custo o número de pessoas com as quais tem contato diariamente. Os cientistas dizem, é a prioridade absoluta. Por isso que após consultar e escutar especialistas (...) decidi reforçar de uma vez por todas as medidas para reduzir nossos deslocamentos e nosso contato ao estritamente necessário. A partir de amanhã ao meio-dia e por pelo menos quinze dias, nossos deslocamentos serão fortemente reduzidos. (...) uma vez mais eu apelo ao senso de responsabilidade e solidariedade."[1]
Fazia poucas semanas que Ricardo havia iniciado um trabalho em uma agência de empregos do outro lado da fronteira, em Luxemburgo[2]. Apesar de viver há mais de sete anos na França, foi só nos últimos dois que conseguiu concluir sua naturalização e, com isso, ter permissão de trabalho em outros países da União Europeia. Juntou-se, então, aos milhares de frontaliers[3] (como são conhecidos os trabalhadores que atravessam diariamente a fronteira em busca de empregos e melhores salários) até que as empresas anteciparam as decisões governamentais. Nos conta:
O Emmanuel Macron fez o discurso falando para todo mundo ficar em casa. Não. Falando para todo mundo se cuidar um pouco, mas os que conseguirem ficar em casa, fiquem. Depois passando uns dois ou três dias falou: não, confinamento geral, ninguém sai.
Isso mudou radicalmente a vida dele, da esposa e das duas filhas que, de um momento para outro, tiveram que se adequar a uma nova rotina no cenário que se desenhava. Serémange-Erzange, comuna com pouco mais de quatro mil habitantes em que a família mora, ficava à época próxima de um dos epicentros do COVID-19 na França. Qualquer deslocamento exceto os essenciais (mercado, consultas médicas de emergência e trabalhos não-remotos) foram proibidos. A mudança maior na família, porém, incidiu em Émilie, esposa de Ricardo, que trabalha como Sage Femme (obstetra) em uma clínica da cidade.
Ela (faz) o acompanhamento da gravidez do começo até o fim, até o parto. Então, é um serviço que é essencial porque as grávidas precisam ser acompanhadas. Ela chega, faz a desinfecção, tem uma parte [da casa em] que deixa a roupa que “tá infectada” e vai dormir separado.
A casa deles, então, foi dividida ao meio para que as crianças não tivessem tanto contato com a mãe durante o período de trabalho. Ela também ficou como a pessoa responsável pelo contato com o “mundo externo”, como ir ao banco e fazer as compras da semana. “É, duro... é duro...mas é necessário.”
“Uma pessoa que não fala a língua, a única coisa que ela pode fazer são as coisas manuais”
Quase oito anos separam o cotidiano de Ricardo do dia que migrou, uma história que teve uma contribuição de acaso.
Nem digo que foi uma escolha porque eu conheci minha esposa, minha atual esposa, num casamento aí no Brasil. Depois começamos a conversar via Skype, via Skype não: via Google tradutor (risos)... Porque a gente não falava a mesma língua e eu não falava francês.
Depois de algum tempo de conversa e após encerrar um contrato de trabalho temporário no Brasil, Ricardo resolveu visitá-la para o que parecia ser um “período de férias” de alguns meses. A visita, no entanto, acabou se estendendo conforme o relacionamento avançava.
Hoje, pai de duas filhas, lembra como foi o momento que deixou o Brasil:
O pessoal não acreditava, não botando uma fé no que aconteceu, que eu ia... Minha mãe não entendendo, mas quando ela viu que eu já estava com a mala, foi lá que ela entendeu que estava indo mesmo para outro lugar.
Nem Ricardo e nem seus familiares viam seu deslocamento como uma mudança definitiva. Dizia pensar na época:
É isso que eu quero... É um tempo e eu achei muito bom porque já tinha terminado a faculdade. É um tempo de fazer um giro e ver a terra de um outro lado, em termos de cultura e língua.
O tempo foi passando e o temporário ficou mais sério. Casaram-se no Brasil e, só quando de volta, ele passou a entender as diferenças culturais e os pontos de atrito que isso provocava.
Foi aí que eu comecei a sentir as dificuldades porque nem tudo (são) flores na vida do imigrante. Não importa onde ele esteja, eu acho que a dificuldade de uma pessoa que migra de um país pro outro é a língua, é a cultura. Aí que eu comecei mesmo a ver e a sentir as dificuldades. O imigrante tem a batalha e a batalha dele é diária. Com a situação do mundo hoje (no contexto da pandemia), fico pensando num imigrante que está começando a morar na Europa nesse exato momento, que é muito complicado.
Além do apoio de amigos e familiares, Ricardo considerava importante para a sua adaptação a própria história da região de Serémange, conhecida amplamente pelas suas levas migratórias de italianos, caboverdianos e marroquinos: “Então, graças a esse (s) coletivo (s) que eu consegui a começar a me mobilizar como cidadão, também aqui na Europa”.
Associação de cultura brasileira de Serémange
Foi graças aos novos amigos que Ricardo começou a trabalhar como educador em uma organização que ajudava famílias migrantes no trato diário com o idioma francês e teve a ideia, a partir desse contato, de montar uma associação que valorizasse a cultura brasileira na região.
A associação foi uma ideia que nasceu quase em 2015 por uma questão individual no começo, egoísta, com a ideia de mostrar para minha filha a cultura do Brasil... de apresentação de filmes. Então, no final das contas, uma amiga minha, franco-portuguesa, falou “cara, e se a gente trouxesse um prato?” e com essa ideia eu fiz um cine-aperitivo, um cinema aperitivo com produtor brasileiro. E essa minha amiga falou “meu, bota isso aí pra virar uma associação, cara, tem tudo pra dar certo, olha o que você fez hoje” e num dia a gente fez apresentação de capoeira, música, e cinema e debate... Então, foi ali que nasceu a ideia da associação.
Ele nos conta que outras comunidades migrantes já tinham associações e que, mesmo sem uma presença significativa da comunidade brasileira na região, viu um potencial de diálogo com outros grupos que já estavam há mais tempo:
(Em Serémange), vieram caboverdianos, vieram marroquinos, vieram italianos e, hoje, onde eu moro se concentra a maior parte de árabes (da França). A comunidade de árabes aqui é muito grande. Então, quando eu montei essa associação foi, também, nesse intuito de quando vi as outras associações dando exemplo. E o interessante é que essas culturas vêm aos nossos eventos e nós vamos aos eventos deles também. Então, há uma troca entre as associações. Na hora da festa todo mundo se junta, dança, aí tem a parte da gastronomia. Muitos dos árabes não comem a carne de porco, então o nosso prato, a nossa feijoada, a gente faz uma adaptação, para todo mundo se integrar. Cada um vem na associação do outro e, como você disse, aqui realmente tem uma grande gama de mistura. Eu acho que é um ponto positivo porque você fala com várias partes do mundo em um só lugar.
É muito rica essa experiência associativa e saber, também, que eu sou o único brasileiro da associação. Agora estão vindo outros (brasileiros), mas o resto é tudo gente de outras origens: franco-italiano, cabo-verdiano e marroquino. Então, é muito legal esse comunitarismo que (também) tem a ver com o Brasil.
O mundo de amanhã
Com a situação do COVID-19, ele conta, com tristeza, que os trabalhos da associação estão suspensos: ”o último trabalho que a gente fez foi o Carnaval, com as crianças, mesmo com os adultos, e depois dali acabou...”. Fala também que, com as crianças pequenas em casa, é necessário ter um cuidado redobrado na hora de comentar sobre as notícias que chegam:
A Nina (filha mais velha) vai fazer seis anos e ela entende porque a professora dela manda as lições pela Internet e indica um canal da TV que passa todo dia de manhã algumas coisas para complementar. Então, nos intervalos comerciais da televisão, mostra lá o que tem acontecido, como se precaver e se manter afastado. A gente tenta, ao máximo, não deixar ela ter esse contato com tudo isso. Notícia a gente nem ouve, nem olha mais, a gente se informa pela Internet e quando vai falar (com outras pessoas) a gente fala distanciado das crianças porque é realmente difícil.
Se a gente fala tudo que está se passando mesmo, as pessoas, os leitos que estão saturados, a falta de máscara... É muita coisa que está acontecendo aqui e vai acontecer em outros lugares. É, por isso, que a gente mantém as crianças bem afastadas disso tudo e tenta, da melhor forma possível, levar nossa vida “normal”, entre aspas, porque não dá para levar normal. Mas pelas crianças a gente dá um jeito.
Apesar das dificuldades, ele imagina como vai ser a vida pós-quarentena e agradece o tempo a mais que tem conseguido passar com as filhas. O isolamento social e as necessidades de higienização constante, às vezes, pesam, mas tem utilizado muito as redes sociais e a Internet para se manter informado e em contato com parentes e amigos próximos e distantes. Por fim, no encerramento da conversa, agradece:
Obrigado pelo convite e espero que todo mundo passe dessa bem e cada coleta de informação que vocês fazem e vão fazer daqui para frente seja de grande valor para as pessoas utilizarem no futuro. Só isso... Obrigado todo mundo e cuidem-se, vamos sair dessa!
Referências bibliográficas
[1] Discurso Emmanuel Macron: https://www.youtube.com/watch?v=mhklV9uOvTQ.
[2] Luxemburgo, um dos maiores salários mínimos dos países do bloco europeu e suas vizinhas França, de onde diariamente se deslocam 87 mil pessoas por conta de trabalho em um país com pouco mais de 150 mil habitantes. (https://www.inmvt.com/en/insight/rush-luxembourg-eastern-france-challenges-cross-border-mobility/).
[3] Frontalier - Alguém que faz o caminho diariamente para trabalhar em outro país - https://www.expatica.com/lu/working/employment-basics/cross-border-worker-in-luxembourg-1063529/; Frontalier workers represent about 42% of workforce on Luxembourg - https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/pdfscache/50943.pdf.
Foto da chamada: bloco de carnaval de rua da Associação Cultura Brasil de Serémange, março de 2020 / Crédito: página de divulgação no Facebook