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Colecionando Histórias Orais: Diálogos Criativos - a migração no circuito da cultura e das artes
O texto de hoje da nossa série "Colecionando Histórias Orais" irá apresentar o projeto mais recente desenvolvido pelo Núcleo de Pesquisa do Museu da Imigração. Trata-se de "Diálogos Criativos: a migração no circuito da cultura e das artes", criado no final de 2018. Como citamos em outros textos, um dos objetivos de nossos atuais projetos de História Oral é mapear e representar os espaços de atuação de migrantes contemporâneos atualmente na cidade de São Paulo, baseando-nos em questões que consideramos pertinentes para que tais vivências sejam entendidas a partir de uma perspectiva coletiva e não só individual. O tema da participação política e dos movimentos sociais foi bastante explorado em "Mulheres em Movimento: migração e mobilização feminina na cidade de São Paulo", bem como em "Conselheiros Migrantes Extraordinários nos Conselhos Participativos Municipais", e resultou em diversas ações dentro do Museu, como exposições temporárias, artigos acadêmicos, rodas de conversa e eventos organizados pelos próprios migrantes.
A partir dessa experiência, é interessante adentrar outro espaço também ocupado de forma muito relevante – e cada vez mais abrangente – pelos migrantes: o circuito cultural e artístico da cidade de São Paulo. Com o objetivo de compreender as diferentes faces dos processos migratórios contemporâneos para o Brasil, e sendo o museu um local de produção e difusão de cultura, consideramos importante abarcar em um novo projeto migrantes que trabalham, estudam e se relacionam com a cena cultural em São Paulo – por exemplo: artistas plásticos, músicos, atores, escritores, pesquisadores, professores, produtores e gestores culturais –, pensando que a experiência sensível da produção de conhecimento e das manifestações artísticas é um terreno fértil a ser explorado quando nos referimos a intercâmbios culturais e à experiência do deslocamento.
Nos últimos anos vimos crescer o número de coletivos artísticos, apresentações e participações de migrantes em diversas áreas do ramo cultural. O coletivo "Visto Permanente", por exemplo, foi criado em 2015 para realizar vídeos com artistas migrantes, suas obras e performances, bem como localizar a participação destes em diversas áreas da cultura paulistana. O material coletado gerou um repositório online que nos ajuda a compreender a dimensão dessa participação migrante na cidade. O festival TAI – Território Artístico Imigrante –, que acontece desde 2016, com a ocupação de uma área para a realização de performances artísticas, também é um exemplo dessa prolífica movimentação. Por sua vez, a Equipe de Base Warmis, formada por mulheres migrantes (algumas das quais já fizeram parte de inúmeras ações do Museu, incluindo projetos de História Oral), possui o grupo musical "Lakitas Sinchii Warmis", que ressalta a importância da expressão cultural das mulheres por meio da valorização de formas de expressões musicais tradicionais andinas.
Em meio a esse cenário efervescente – do qual fornecemos apenas alguns exemplos –, no ano de 2019, o Núcleo de Pesquisa do Museu se debruçou sobre o estudo da cultura e das artes em sua relação com a experiência migratória, abarcando inclusive pesquisas relacionadas à presença de migrantes na universidade, inseridos nos estudos culturais e das ciências humanas – como era o caso do croata Milan Puh, um dos entrevistados para o projeto. Partindo da premissa de que a arte e a cultura são espaços privilegiados para a compreensão de elementos subjetivos da experiência migrante, que dificilmente entenderíamos por meio de outros processos, consideramos que essa abordagem não só seria complementar àquelas que já desenvolvemos, mas também traria para o Museu uma nova maneira de se relacionar com a temática migratória. No entanto, lidar com arte no contexto de um museu histórico exige um trabalho cuidadoso, visto que esta não é nossa área de atuação central e, por isso, estamos caminhando de forma lenta e atenta dentro desse novo universo.
Foi também nesse contexto que, no mesmo ano, o Museu da Imigração realizou seu primeiro Programa de Residência Artística, iniciativa que ocupou nossa atenção por boa parte daquele exercício. Com os objetivos (descritos no edital) de "fomentar e apoiar a produção artística sobre o tema das migrações", "estimular a pesquisa e a reflexão crítica sobre esse tema" e "promover a interação entre artistas e o público do Museu", bem como de fortalecer a produção artística de migrantes internacionais, foram selecionados dois artistas estrangeiros que deveriam desenvolver trabalhos relacionados à temática da "acolhida" durante os três meses de duração do programa, a partir de uma sequência de atividades de imersão realizadas junto às equipes do Museu. Os dois artistas selecionados para a residência, a argentina Emilia Estrada e o colombiano Nicolás Linares[1], foram entrevistados em "Diálogos criativos".
O roteiro de perguntas seguido nas entrevistas inicia-se de maneira semelhante aos demais projetos, questionando sobre país de origem, infância, motivos da migração, preparativos da viagem, primeiras impressões e processos de adaptação, estranhamentos, entre outros. Seguem, então, as perguntas mais específicas sobre a atuação no circuito cultural, de forma personalizada de acordo com a profissão e as atividades realizadas pelos migrantes, com foco na compreensão de como é ser artista ou agente cultural migrante no Brasil e na relação entre trocas culturais decorrentes da migração. Sobre esse tema, Emilia Estrada comenta:
"Então certamente influencia que eu não seja daqui, por exemplo, eu tenho um trabalho que sempre está atravessado pela história da formação da cidade, a história de formação desse continente todo, o processo de colonização, que tem muito a ver em como eu aprendi história e a história contada de outra forma. Então eu tento sempre entender como é que foi aprendido história aqui e como a história é tão diferente uma de outra ou como é tão parecida, então certamente tem a ver do meu ponto de vista, esse deslocamento."[2]
Além da influência de sua trajetória em seu processo de criação artística, Emilia tratou também da questão da relevância da arte:
"Eu tenho uma amiga lá do Rio que ela fala que a arte é uma militância infantil, a gente faz, faz, bota uma fé, acredita e em um momento diz ‘por que eu estou fazendo isso?’. Então a importância da arte eu acho que ela dá espaço para fazer perguntas, a grande oportunidade da arte é fazer perguntas, é atuar nas brechas, então essa possibilidade é arte, é a importância de entender estes espaços que estão vazios e se perguntar por que estão vazios, por que será, criar essas perguntas."[3]
Estudando essa temática, podemos perceber que a realização de atividades ligadas à arte e à cultura em geral fazem parte da construção de um discurso narrativo sobre a própria trajetória, passando pela compreensão do que é ser migrante:
"Eu devo reconhecer que tenho uma certa dificuldade de me apresentar como imigrante, essa tentativa de amenizar o sofrimento, de estar longe e tal, desse medo, de estar sozinha, me coloca em um lugar tão ativo para pertencer, para não sofrer essa distância, que eu sempre esqueço de reafirmar que eu venho de outro lugar, de outro país. Então não sei dizer como seria ser artista estrangeiro especificamente, mas eu coloco o pé, fico pensando em quanto a possibilidade de trabalho é difícil no Rio, o circuito é muito pequeno, muito seletivo, eu acho que está se abrindo agora, mas eu acho que está se abrindo positivamente para outras narrativas que precisavam ser ouvidas, sabe, que são daqui mesmo e que precisam ter um lugar de visibilidade, de disputa, então nisso tudo que acontece eu estou meio que tentando entender, qual é o meu discurso dentro disso tudo, como se apresenta o meu discurso diante de tudo isso."[4]
Para Milan Puh, que já estudava língua portuguesa e cultura brasileira antes de sair da Croácia, a questão se apresenta de outra forma:
"Acho que [me vejo] como uma pessoa de fora, mas eu sempre tive muita vontade de conseguir adentrar o máximo possível de uma pessoa de fora na cultura brasileira. Eu não queria ficar nessa vida eterna que alguns imigrantes, como eu via, conheço alguns que são ainda assim, sempre estranho. Tenho uma amiga que é croata, mas ela cresceu na Alemanha e lá ela conheceu o seu marido que é daqui de São Paulo e eles vieram para cá e ela ficou morando durante muito tempo lá. Mas ela sempre meio que continuou estrangeira para mim, sempre continuou uma pessoa de fora, em uma questão de conhecimento de língua, de trabalho, nas atitudes, sempre estranhando muita coisa do Brasil, ‘ah, mas o Brasil faz assim’, então né, eu via outras pessoas muito mais estrangeiras que eu, mas com o tempo tem umas coisas que eu falo ‘não, não sou brasileiro’ se as pessoas falam ‘nossa, mas você parece ser um brasileiro nato’, eu falo que não, posso até imitar bem, eu brinco que sou um produto de importação de qualidade".[5]
Milan trata ainda da importância de se trabalhar com cultura como um "campinho" para a integração das diversas comunidades e uma maior sensibilização acerca da experiência migrante:
"Hoje em dia o Brasil tem uma abertura maior, eu vejo o mesmo comparando o que era há dez anos e agora. Com relação à Croácia, se tem muito mais interesse, tem mais gente querendo saber, então a gente tem uma certa facilidade, uma visibilidade maior né, para fazer esses eventos. A gente faz agora a Feira do Leste Europeu, essas coisas que aos poucos vão construindo os espaços dos eslavos aqui na cidade e em outros lugares, então tem muita coisa para fazer, acho que isso foi me estimulando, começando com essas questões de imigração e cultura que dá para fazer muita coisa, e que precisa fazer muita coisa nesse sentido. E também para a gente fazer uma coisa menos isolada, pois eu via que a comunidade fazia suas coisas, mas elas ficam muito fechadas, por várias razões né, mas elas ficam muito fechadas nesses espaços internos, e tentar vincular isso com outras experiências de imigração mais recentes, então tentar ver como essas novas imigrações se relacionam."[6]
Esses trechos dos depoimentos ajudam a entrever a importância da participação dos migrantes como agentes artísticos e culturais na cidade de São Paulo, e não somente como portadores ou assimiladores de uma ou outra cultura. Habitantes da cidade, eles são destacados vetores da pluralidade que caracteriza a metrópole, intercambiando vivências e práticas artísticas. Sendo também o Museu da Imigração parte integrante do circuito cultural de São Paulo, a instituição encara o registro dessas experiências como um dever – sem esquecer o grande prazer que esse intercâmbio possibilita a toda a equipe de pesquisa.
Referências bibliográficas
[1] A entrevista de Nicolas Linares ainda se encontra em fase de processamento e, por isso, seus trechos não constam nesse artigo.
[2] Emilia Estrada. Entrevista de História Oral, 2019. Acervo Museu da Imigração.
[3] Idem.
[3] Idem.
[5] Milan Puh. Entrevista de História Oral, 2018. Acervo Museu da Imigração.
[6] Idem.