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Imigrantes, refugiados e o coronavírus: notas para reflexão
As mobilidades humanas, que já eram pauta do dia e objeto de discursos securitários e de gestão bio (e necro)política durante toda a última década, tornaram-se tema central após a eclosão da pandemia do novo coronavírus. Como Paul Preciado argumentou, por ocasião da pandemia e do acirramento do controle de fluxos e mobilidades que ela causou, a nova fronteira necropolítica deslocou-se das divisas nacionais à porta de nossas casas e não para de nos cercar: o ar que você respira deve ser apenas seu, e a nova Lampedusa é a sua pele [1][2].
Na Europa, a pandemia suscitou o debate sobre a importância da mão-de-obra imigrante: na Alemanha, foram feitas campanhas em redes sociais convidando médicos imigrantes e refugiados a se apresentarem em seus postos de trabalho, enquanto 14 mil médicos sírios aguardavam a revalidação de seus diplomas[3]. Nos EUA[4] e na Europa[5], os milhares de imigrantes que trabalhavam nas lavouras tornaram-se repentinamente mão-de-obra essencial, ainda que os EUA insistissem na continuidade de sua política de deportações, ajudando, enquanto epicentro da pandemia no mundo, a espalhar a Covid-19 para países como o Haiti. As mobilidades que interessavam ao capital foram as primeiras a serem lembradas como essenciais, reafirmando "a desumanização das populações deslocadas, (…) que são costumeiramente representadas sem anseios, projetos ou sonhos"[6]. Não obstante, as barreiras sanitárias – racistas e xenófobas – foram medidas de primeira hora e os primeiros inimigos do vírus foram as pessoas em mobilidade, embora essa topografia seja irregular. Estávamos confrontados pela escolha entre o isolamento nacionalista e a solidariedade global[7] e o primeiro paradigma claramente saiu na dianteira.
No Brasil, a situação é alarmante. Enquanto a militarização da gestão dos fluxos de imigrantes venezuelanos prossegue[8], a Operação Acolhida não abre mão da continuidade da interiorização desses imigrantes para outras regiões do país, embora a fronteira com a Venezuela tenha sido a primeira a ser fechada com a crise[9]. Os militares da Operação adotam o perigoso discurso de que, apesar de os números de contaminação estarem crescendo exponencialmente entre aqueles que trabalham em Roraima, eles não estão contaminados, mas sendo "imunizados para ações futuras". Já há diversos casos confirmados da Covid-19 em centros de acolhida gerenciados pelas Forças Armadas. Além disso, enquanto enfrentamos a pandemia do século, o governo federal decidiu expulsar a representação diplomática da Venezuela no Brasil para agradar à sua claque, o que torna a situação na fronteira ainda mais tensa.
Em São Paulo, cidade com maior número de imigrantes e refugiados do país, preocupa a situação nos centros de acolhida, majoritariamente geridos por organizações sociais (OS) da sociedade civil, ainda que tenham convênios com o governo municipal e/ou estadual. Muitos têm realizado articulações diretamente com as Unidades Básicas de Saúde (UBS) de seus territórios. Mas, como observar o distanciamento social em locais onde quartos são compartilhados, às vezes por mais de 30 pessoas, ou onde as refeições são realizadas em refeitórios comunitários? Como fazê-lo sem que isso resulte em um controle mais agudo da mobilidade, ou em processos violentos de controle da vida dessas pessoas?
A prefeitura municipal organizou, por meio da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), um fluxo de encaminhamento externo para conviventes que manifestem sintomas ou tenham diagnóstico confirmado de Covid-19, e mais de 700 vagas extras de acolhimento foram abertas em centros especificamente preparados para acolher a população albergada (brasileira ou estrangeira). Trabalhadores dos centros também foram orientados a liberarem quartos para fazer espaços próprios de quarentena para imigrantes com sintomas. Sabemos, entretanto, que nem todos os centros dispõem desse espaço e que a criação dessas vagas extras pode não ser suficiente para acolher a demanda massiva que deve se apresentar nas próximas semanas. A garantia de equipamentos de proteção individual para trabalhadores e conviventes tem sido vacilante em alguns casos e é outro ponto preocupante.
Além disso, organizações de imigrantes têm chamado a atenção para questões como os ritos funerários próprios de imigrantes e refugiados prescritos pelas mais diversas culturas, além dos traslados dos corpos para seus países de origem, um rito burocrático e caro. Um dos grandes obstáculos que se apresenta é a falta de obrigação da notificação de nacionalidade quando da admissão de pacientes em hospitais, o que torna impossível saber a quantidade exata de migrantes hospitalizados e/ou mortos. Em alguns casos, essas pessoas não têm família no Brasil, e no horizonte das valas comuns que temos vislumbrado, milhares podem morrer completamente invisibilizados e sem notificação às famílias. Quando têm família no país, também há dificuldades em reclamar o corpo ou em obter informação sobre parentes internados.
Nas margens da cidade, onde grande parte dos migrantes haitianos, bolivianos e africanos de diversos países vão morar, a situação também é grave. Os que têm emprego têm sido obrigados a trabalhar, assim como os trabalhadores precarizados que atuam no comércio informal. Quando são formalmente contratados, relatos dão conta de migrantes sendo forçados por seus empregadores a assinar rescisões contratuais abrindo mão de suas indenizações. Os casos de violência doméstica também têm aumentado drasticamente. Ainda que uma rede de solidariedade envolvendo igrejas e organizações locais esteja atuando na arrecadação e distribuição de cestas básicas, a situação é periclitante. As dificuldades para obter o auxílio emergencial do governo federal são inúmeras e a exigência de CPF exclui todos os indocumentados – que, é preciso que se diga, têm o direito de serem atendidos pelo SUS independente da situação documental. A impossibilidade de receber ou enviar remessas é também uma questão que aprofunda vulnerabilidades, pois os impede de usufruir de uma rede de solidariedade internacional de parentes e amigos.
Dessa forma, o vírus continua(rá) vitimando especialmente os mais vulneráveis. Se ele foi posto em circulação pela mobilidade de uma elite global que tem acesso ao privilégio de se locomover através das fronteiras que o capital torna porosas para alguns, são aqueles pobres, negros, LGBTQI+, indígenas e mulheres, originários dos países das franjas do capitalismo global e incluídos pela exclusão, que pagarão pelas consequências mais agudas da crise que a pandemia trouxe a reboque. As fronteiras se multiplicam e os muros crescem, condenando alguns de maneira preferencial.
Alexandre Branco Pereira é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSCar, membro da coordenação da Rede de Cuidados em Saúde para Imigrantes e Refugiados de São Paulo e colaborador no Programa de Psiquiatria Social e Cultural do IPq-HCFMUSP.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências bibliográficas
[1] Alusão à ilha italiana de Lampedusa, onde milhares de refugiados são resgatados por ano, e tantos outros morrem em naufrágios.
[2] Preciado, P. Aprendiendo del vírus. El País, 28 de março de 2020. Disponível em https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/1585316952_026489.html, 2020.
[5] https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/04/20/imigrantes-colheitas-europa.htm.
[6] Navia, A. M. F. Ficar, migrar e disputar o futuro. Cadernos de Campo, v. 28, n. 2, 2019. DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v28i2p21-25.
[7] Harari, Y. N. The world after coronavirus. Finantial Times, 20 de março de 2020. Disponível em https://www.ft.com/content/19d90308-6858-11ea-a3c9-1fe6fedcca75, 2020.
[8] Machado, I.J.R.; Vasconcelos, I. S. Desejáveis e indesejáveis: controvérsias no acolhimento de venezuelanos em Boa Vista, RR. In ABA (org.). 31ª Reunião da ABA (1-18). Edições ABA, 2018.
[9] As razões para isso permanecem incertas, uma vez que o epicentro da pandemia na América do Sul é justamente o Brasil. Cancelar os voos de São Paulo a Roraima seria epidemiologicamente mais coerente, mas sabemos que o propósito não era proteção epidemiológica. Para uma discussão sobre a politização da política migratória envolvendo a Venezuela, ver https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2020/Os-usos-e-abusos-políticos-do-refúgio.
Crédito foto da chamada: Vikas Anand Dev. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito Ocupação "Cientistas sociais e o Coronavírus" em branco.
A ocupação "Cientistas sociais e o Coronavírus" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) para divulgação de artigos selecionados do boletim homônimo, iniciado em março de 2020. Os textos podem ser consultados, também, em formato de ebook. Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.