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Mulheres e migração no acervo museológico do MI - parte 2
Em uma publicação, apresentada na série de artigos "Mulheres e migração" em março deste ano, realizamos uma introdução sobre algumas possibilidades de análise da nossa coleção museológica a partir de uma história das mulheres e dos estudos de gênero. Naquele primeiro momento, nos centramos no campo da moda e seus artefatos, como os acessórios de vestuário. Hoje, falaremos sobre outra tipologia de objetos fortemente presente em nossa coleção: os utensílios de cozinha.
São centenas de itens entre talheres, conchas, panelas, moedores de carne e de café, máquinas de macarrão, leiteiras, chaleiras, xícaras, copos, canecas, garrafas, pratos, cestas, potes, tigelas, cafeteiras, guardanapos, bandejas e outros. Há ainda aquelas peças específicas de determinadas culturas, como recipientes para saquê japoneses ou um samovar de chá russo. Esses artefatos podem ser divididos entre objetos utilizados no período de funcionamento da antiga Hospedaria de Imigrante do Brás e aqueles coletados posteriormente, doados por famílias de migrantes e descendentes, majoritariamente internacionais e que compuseram parte da classe média paulistana. Os objetos de uso da Hospedaria são sempre de maior dimensão – devido, claro, ao uso em uma escala quase industrial, com uma aparência mais simples e sóbria. Já aqueles doados possuem formas e detalhes variados e se parecem muito com itens cotidianos que costumamos encontrar nas casas de famílias brasileiras.
A circulação de produtos alimentícios, bem como a do estilo dos utensílios e dos próprios objetos em si, é um tema que se relaciona diretamente com as questões concernentes ao Museu da Imigração: a alimentação e as maneiras à mesa são importantes elementos das culturas e da sua circulação pelo mundo, se relacionando intimamente com as memórias de quem migra. A natural afetividade ligada a esses temas é também essencial para compreendermos o porquê dessas peças estarem aqui, resguardadas agora como patrimônio da imigração. Se comida é uma forma de linguagem, memória, construção e reconstrução de identidades, a interação com os objetos é um de seus elementos constituintes.
Olhando para esse conjunto, podemos interpretá-lo também a partir seguinte diferenciação: o dos objetos de preparo, relacionados ao ambiente mais íntimo da cozinha, e os de servir, geralmente apresentados nas salas de jantar e espaços mais públicos de uma casa. Seguindo a análise proposta por Vania Carneiro de Carvalho, é fácil perceber uma diferença imediata entre esses dois grupos: os primeiros tendem a ser mais simples, funcionais e feitos com materiais duradouros enquanto os segundos são mais decorativos, possuindo mais detalhes estéticos e matérias-primas mais frágeis. Ainda que as mulheres sejam, historicamente, as principais responsáveis pelo preparo dos alimentos no âmbito familiar, uma feminilização dos utensílios de serviço também se destaca nos detalhes florais, cores suaves, bordados ou pinturas delicadas.
Para Vânia Carvalho, essa dimensão ornamental traduz noções como elegância, harmonia, bom gosto e outras ideias frequentemente associadas ao "ser feminino"; e é responsável – assim como no caso de outros objetos do ambiente doméstico – pela formação de uma identidade social diferenciada pelo gênero. A configuração da cozinha no espaço físico de uma casa ou de uma instituição é testemunho da rotina do local e da interação entre os seus ocupantes. Nela são encenados diversos papeis sociais que correspondem, por sua vez, às diversas divisões da sociedade, como gênero, raça, classe social, entre outros. Em contraposição à sala de jantar, torna-se um ambiente geralmente feminino e laboral, que possui as suas próprias formas de sociabilidade.
Para entendermos um pouco mais esse conjunto de nossa coleção e a sua relação com as temáticas de migração e gênero, partiremos da análise de alguns objetos relacionados ao consumo do chá. O chá e as infusões foram produtos que se difundiram no Ocidente através da British East Trading Company no início do século XVII; a sua escassez e o crescimento da demanda contribuíram para o aumento do seu preço e, consequentemente, na sua transformação em símbolo de status. Alvo de um crescente interesse, o seu comércio se tornou mais regular e os chás, mais acessíveis. Junto com a bebida, chegaram também os utensílios já adotados em diversas partes do Oriente, como materiais e formas propícias para a infusão. Da Inglaterra, a bebida se espalhou para o restante da Europa e, então, para o Novo Mundo. Ainda que considerado por alguns inadequado ao clima tropical por seu calor, o chá passou a fazer parte do cotidiano dos habitantes das terras brasileiras a partir do início do século XIX, com a chegada da corte portuguesa e de muitos migrantes internacionais. A partir da sua difusão ao longo do século XIX, o chá passou a ser visto, em oposição ao consumo do café, como uma prática feminina, geralmente comandada e organizada por mulheres; e, por isso, um instrumento de reafirmação de poderes e de construção das identidades de gênero e de um grupo social.
Um conjunto de chá composto de quatro peças está exposto atualmente no módulo 4 da exposição de longa duração do Museu da Imigração. Trata-se de dois bules, uma leiteira e um açucareiro. Em nossos registros, não possuímos quase nenhuma informação sobre ele, a não ser que pertenceu à antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás. O desgaste do material revela que essas peças foram usadas frequentemente. Uma delas, inclusive, apresenta uma pequena pedra no lugar do pegador sobre a tampa — uma provável substituição após o original ter se soltado.
O cuidado estético da composição das peças e o material nobre de que são feitas, atestam que o seu uso, muito provavelmente, se dava em um espaço púbico e não no ambiente privado das cozinhas e do preparo dos alimentos. Ou seja, em um lugar de convívio social, onde a louça e o serviço de mesa exerciam um papel importante na produção e reprodução das formas de sociabilidade. Podemos imaginá-los sendo utilizados, por exemplo, pelos funcionários nos diversos escritórios da instituição, já que o conjunto é demasiado refinado para ter sido usado massivamente pelos hóspedes que passaram pelo local. Além disso, a simplicidade das suas formas remete à decoração tipicamente sóbria de ambientes considerados masculinos, como os escritórios. Historicamente, esses são locais masculinos, onde o homem era responsável por conduzir as conversas e atividades. À mulher, era relegado o papel de servir ou somente acompanhar a conversação, na maioria das vezes. No caso de uma instituição como a Hospedaria, por exemplo, os cargos mais altos e os escritórios eram repletos de funcionários do gênero masculino e as mulheres desempenhavam atividades relacionadas ao cuidado – como o secretariado. Daí se entende, por exemplo, que a utilização de certos utensílios por esses homens representava, de certa forma, a sua posição hierárquica dentro dos órgãos.
Outro objeto exposto em nossa exposição de longa duração é uma chaleira bastante rústica, de ferro, sobre a qual não temos nenhuma informação relacionada à procedência. Essa peça, provavelmente, era utilizada no espaço privado da cozinha, revelando, por exemplo, um comportamento inerente à sua utilização. Ou seja, uma relação com a hierarquia e a distinção social: é mais provável que mulheres e empregadas que trabalhavam na cozinha ou pessoas com menor poder aquisitivo tenham feito uso direto dela, do que homens ou membros de uma elite que, raramente, circulava pelo espaço da cozinha.
Em nossas Reservas Técnicas encontra-se ainda um bule chinês, repleto de detalhes: em porcelana, traz pinturas principalmente nas cores vermelha, verde, azul, marrom e dourado; os desenhos têm motivos florais e geométricos, além das duas figuras humanas representadas no centro, em uma cena que lembra uma dança ou um galanteio. Além das duas alças e do bico, provavelmente havia uma tampa que se perdeu com o tempo. O ritual oriental do chá viajou o mundo todo, incluindo a América. É interessante notar que o movimento migratório de chineses para o Brasil teve como ponto de partida, justamente, o cultivo do chá.
Em relação ao artefato em si, também podemos considerar a influência relevante dessa cultura presente na mesa dos brasileiros de vários períodos históricos. A porcelana chinesa foi um dos primeiros produtos globalizados que tiveram rápida aceitação quando adentraram o Ocidente, por volta do século XVI, primeiro como produto importado e, posteriormente, passando a ser produzida localmente. Essa circulação de objetos e técnicas influenciou os hábitos à mesa, os costumes e a própria arte ocidental ao longo do tempo. Motivos conhecidos como chinoiseries — padronagens e temas que remetem à cultura oriental — ganharam destaque no design de muitos objetos de decoração e fazem parte de uma estética que também representa a feminilidade no Ocidente.
Por fim, apresentamos uma leiteira que, possivelmente, compunha um jogo de chá. Foi doada por uma alemã como uma peça proveniente da França e datada do século XIX. A sua forma é bastante tradicional e apresenta uma pintura decorativa que pode ser analisada em paralelo àquela do bule chinês apresentado acima: mais uma vez, uma cena galante na porcelana branca, onde estão representadas uma figura masculina e uma feminina. A mulher encontra-se sentada e o homem agachado sob os seus pés, em frente de alguns pares de sapato. A inscrição, em francês, revela a cena: "À la pantoufle de Cendrillon – Bel amie cordonnier pour dames et fillettes".
Cendrillon é o nome dado à personagem Cinderela, dos contos de fadas, que se difundiram na França principalmente a partir do século XVII sob a autoria de Charles Perrault. No entanto, a segunda parte da frase poderia ser traduzida como "senhor sapateiro para senhoras e moças" – seria, portanto, um anúncio de sapateiro estampado com tanto esmero na leiteira? Não sabemos. O que podemos afirmar é que, no século XIX e início do XX, a França exercia uma grande influência cultural sobre todo Ocidente. A sua estética, a sua língua e as suas maneiras eram imitadas por muitos membros da elite de diversos países, inclusive do Brasil. E não é a mulher francesa um ícone de elegância, bem viver e bom gosto até os dias de hoje, reafirmando um padrão de beleza europeu e bastante normativo?
A associação entre as mulheres e os utensílios domésticos nos traz pistas para uma história riquíssima, complexa e cheia de nuances, que se relaciona com a formação de múltiplas formas de identidade — também não é à toa que muitos dos grandes chefes de cozinha são homens enquanto a maioria das refeições familiares são preparadas por mulheres. A cozinha pode ser vista como um espaço de exercício de autonomia ao mesmo tempo que é um local de criação e reprodução de uma série de limitações e violências. E essa salada fica ainda mais temperada se adicionarmos uma pitada de migração. À mesa!
Bibliografia
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