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Os efeitos da Covid-19 sobre os fluxos imigratórios no Brasil
Por Antônio Tadeu Ribeiro de Oliveira
Imagens de Dasha Horita
A proposta de elaboração deste artigo surge no II Seminário Internacional sobre Migrações em Múltiplas Perspectivas - Panorama das Migrações e Refúgios em Tempo de Pandemia e da COVID-19, no qual a riqueza e diversidade das intervenções estimularam a elaboração deste Dossiê[1].
O presente artigo utiliza as bases de dados da Polícia Federal sobre os registros administrativos criados para a gestão dos processos de regularização dos migrantes e solicitantes de refúgio, a saber: Sistema de Tráfego Internacional de Pessoas – STI, Sistema de Registro Nacional Migratório (SisMigra) e Sistema de Tráfego de Pessoas – Módulo de Alerta e Restrições (STI- MAR). A partir desses dados é traçado um panorama sobre os impactos da pandemia do SARS- COV-2 sobre fluxos imigratórios.
Os impactos da COVID-19
A abordagem sobre os impactos da pandemia da COVID-19 nos registros migratórios tem foco na dimensão demográfica, ou seja, como foi afetada a regularização dos imigrantes nesse período. A opção por essa abordagem não significa desconhecer ou desconsiderar os reflexos da crise sanitária nas condições sociais e econômicas para parcela importante dos imigrantes, sobretudo aquela ainda não regularizada no país, que vem enfrentando sérias dificuldades para acessar o auxílio emergencial devido ao seu status migratório, o que coloca em risco a própria sobrevivência dessas pessoas. São os mais variados relatos que chegam dando conta da situação de ainda maior vulnerabilidade desse coletivo, que pode ser contabilizado aos milhares.
Em 04 de fevereiro de 2020, muito embora o presidente da república tenha aderido ao negacionismo frente à pandemia, o governo decretou o estado de emergência em saúde pública, sinalizando que seriam necessárias medidas drásticas para enfrentar a crise que se avizinhava. Contudo, prevaleceu a negação e o país até o momento não possui um plano de enfrentamento à crise pandêmica que oriente os entes federados: os testes não foram aplicados em volumes adequados, não se ampliou o número necessário de leitos, não foram adquiridos respiradores suficientes e muito menos comprados e distribuídos, em quantidades suficientes, equipamentos
de proteção individual; o distanciamento social, iniciativa fundamental para evitar o contágio, foi negligenciado, enfim, prevaleceu o verdadeiro império da necropolítica. Como resultado, o país exibiu, a certa altura, a triste estatística de ser o segundo em número de casos e de óbitos decorrentes do SARS-COV-2, atrás apenas dos Estados Unidos, presidido, naquela ocasião, pelo também negacionista Donald Trump.
Na tentativa de criar barreiras sanitárias, de forma a evitar a importação do vírus, a partir de orientação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa, no ano de 2020, foram editadas portarias regulando o fechamento das fronteiras pelo prazo de 30 dias, para pessoas de quaisquer nacionalidades que não a brasileira[2]. A Portaria Interministerial 201, de 24 de abril, fechou as fronteiras aquaviárias; a Portaria Interministerial, de 28 de abril, as fronteiras aéreas; e a Portaria Interministerial 204, de 29 de abril, as fronteiras terrestres. Como o cenário só piorava ante a ausência de políticas efetivas de combate à doença, mais quatro portarias foram editadas: em 22 de maio a Portaria 255 estendia por mais 30 dias as restrições; em 20 de junho a Portaria 319 acrescentava outro período de 15 dias às proibições; em 30 de junho através da Portaria 340 foram acrescentados mais 30 dias; e em 29 de julho, a Portaria CC- PR/MJSP/MINFRA/MS nº 1, editada em conjunto pela Casa Civil da Presidência da República e os Ministérios da Justiça e Segurança Pública, Infraestrutura e Saúde, prorrogou por mais trinta dias as restrições de entrada no país pelas vias terrestre e aquaviária e liberou o acesso por via aérea[3].
As portarias foram objeto de controvérsias e polêmicas, colocando em lados opostos movimentos em apoio aos imigrantes, contrários ao fechamento das fronteiras, por entenderem que inibiam a livre mobilidade das pessoas num momento de crise aguda, e o governo, que insistia ser necessária a contenção da circulação do vírus pelos postos de fronteiras. A realidade é que nem os defensores da livre mobilidade apresentaram alguma proposta que conciliasse a movimentação com os necessários cuidados sanitários, nem autoridades governamentais implementaram medidas de controle pós entrada daqueles nacionais e não nacionais autorizados a ingressar no território brasileiro. Quer dizer, nenhum dos dois lados pareceram efetivamente preocupados com a dimensão da saúde pública envolvida na questão.
Em relação aos registros administrativos nesse período de pandemia, é importante destacar que aqueles que tratam da inserção e movimentação dos imigrantes no mercado de trabalho formal, até o momento que o artigo estava sendo redigido, não se encontravam disponíveis. Essa limitação impacta fortemente uma dimensão importante, pois gera uma lacuna no entendimento de como os trabalhadores imigrantes foram afetados pela crise da COVID-19.
Observando os movimentos pelos postos de fronteira no país, o STI sinaliza tendência de queda desde janeiro, tendo em vista que o vírus uma vez que foi detectado na China, em dezembro de 2019, se espalhou rapidamente para outras partes do mundo, iniciando pela Ásia e Europa. Esse movimento ampliou as iniciativas no sentido do fechamento das fronteiras em vários países. No Brasil, o declínio na movimentação pelos postos de fronteira iniciou sem muita velocidade nos meses de fevereiro e março, de 2020, intensificando a redução em abril, mesmo antes das restrições impostas pelas autoridades brasileiras, e mantendo a velocidade de queda no mês de maio. A redução foi de 3,4 milhões de movimentos em janeiro para 98,5 mil em maio (Gráfico 1).
O SisMigra apresentou comportamento semelhante ao do STI, com a diminuição no número de registros iniciada no mês de janeiro. O volume de registros despencou de 17,0 mil naquele mês, para 374 regularizações no mês de maio (Gráfico 2).
As solicitações de refúgio, trazidas pelos registros do STI-MAR, que apresentavam tendência de declínio desde novembro de 2019, seguem no mesmo ritmo até fevereiro. Em março sofre um ligeiro aumento para depois iniciar, de forma muito intensa, redução nos meses seguintes (Gráfico 3). Como majoritariamente esses solicitantes são venezuelanos, o que parece ter ocorrido foi uma corrida para regularização do status migratório, via pedido de refúgio, daqueles que já se encontravam em território brasileiro, em particular no estado de Roraima. Essa estratégia pode ter sido adotada para evitar eventuais deportações, por conta da pandemia, daqueles que se encontravam em situação irregular.
Considerações finais
O artigo pretendeu mostrar a relevância do uso dos registros administrativos, mesmo limitado à apreensão somente da parcela regular da imigração, para compreensão sobre o profundo impacto causado pela COVID-19 na mobilidade de imigrantes e solicitantes de refúgio para o Brasil e até mesmo do segmento de nacionais que emigram.
Uma pergunta foi colocada no seminário, sendo sua contestação nada trivial: como se comportarão as migrações no pós-pandemia? Um possível caminho para entender o que poderá acontecer deve ser encontrado nas respostas às crises sanitárias, econômicas e sociais nos principais países de destino. Do ponto de vista sanitário, o quanto o vírus continuará circulando pode levar à manutenção das restrições à mobilidade humana, com a permanência do fechamento de fronteiras, em especial, em relação aos fluxos oriundos nos países em desenvolvimento; na dimensão econômica, o impacto certamente levará à recessão das principais economias, lugares de destino da migração, podendo se tornar um fator de menor atratividade. Por outro lado, se a crise nos países menos desenvolvidos for numa intensidade que coloque a emigração como estratégia primeira para a sobrevivência, os movimentos se intensificarão; e por fim, dependerá de quem sairá hegemônico nas narrativas hoje em disputa nas sociedades, que contrapõem aqueles que percebem as migrações pela ótica das garantias e dos direitos humanos e os que as tratam de forma preconceituosa e xenofóbica.
Enfim, da solução dessa difícil equação, que envolve diversas variáveis, sairá a resposta à formulação proposta.
Antônio Tadeu Ribeiro de Oliveira é pesquisador em Informações Geográficas e Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); Coordenador Estatístico do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra/UnB); Estatístico pelo IME/UERJ – 1999; Especialista em Demografia e Desenvolvimento pelo CELADE/CEPAL – 1994; Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ – 1999; Doutor em Demografia pelo IFCH/UNICAMP – 2009, Pós-Doutor pela Universidad Complutense de Madrid – 2014-2015.
Dasha Horita estudou Comunicação no Tec de Monterrey, México. Trabalhou como fotógrafa para a principal revista de viagens "Mexico Desconocido", faz fotografía corporativa e publicitária, porém se considera uma simple fotógrafa de retratos.
Foto da chamada: "Interpretações do migrar na infância". Crédito: Dasha Horita. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito CHAMADA "MOBILIDADE HUMANA E CORONAVÍRUS" em branco.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências
[1] O artigo na íntegra pode ser consultado no link da publicação: https://www.servidores.ufscar.br/igor/wp-content/uploads/2021/06/Livros-migra%C3%A7%C3%B5es.pdf. O livro foi publicado em 2021.
[2] As portarias não alcançavam as seguintes situações: naturalizados, imigrantes residentes, não nacionais em missão oficial ou que fosse cônjuge, companheiro, filho, pai ou curador de brasileiro, ou cujo ingresso seja autorizado especificamente pelo Governo brasileiro em vista do interesse público ou por questões humanitárias.
[3] As portarias seguiram sendo editadas nos anos de 2021 e 2022.
A chamada "Mobilidade Humana e Coronavírus" é uma iniciativa do Museu da Imigração para divulgação de artigos, ensaios e materiais visuais selecionados, por meio de edital aberto entre fevereiro e abril de 2022. Dando continuidade à proposta desenvolvida na série homônima, seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.