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Projeto Línguas Migrantes: Nossos primeiros passos
Raquel Freitas - Supervisora de projetos e pessoas
TEXTO 1
Este texto inaugura uma série de publicações dedicadas ao Projeto Línguas Migrantes, iniciativa idealizada e desenvolvida pelo Núcleo Educativo do Museu da Imigração, em parceria com a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), o Centro de Atendimento ao Imigrante – Oriana Jara (CRAI) e a Secretaria Municipal de Educação (SME), representada pelo Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais (NEER). Ao longo das próximas publicações, compartilharemos os caminhos que trilhamos, as reflexões construídas e as experiências vivenciadas pelos educadores que participaram do projeto. Trata-se de uma oportunidade para registrar aprendizagens, dar visibilidade às práticas educativas que combatem o racismo e a xenofobia no ambiente escolar, além de fortalecer o debate sobre políticas linguísticas, diversidade cultural e o acolhimento de estudantes migrantes.
Nossos primeiros passos.
O Núcleo Educativo do Museu da Imigração, desde de 2014, atua em diversas frentes e, entre elas, destacamos os projetos, as visitas educativas e os encontros de formação para professores, estudantes de licenciatura e guias de turismo. Com o passar do tempo, passamos a refletir como poderíamos expandir a presença do Museu para além de seus muros, acessando outros territórios, sem nos limitarmos ao nosso espaço físico. Com essa mudança de perspectiva, reconhecemos a importância de nos aproximarmos das unidades escolares da rede pública de ensino de São Paulo, com o objetivo de estabelecermos um contato mais próximo e efetivo com as escolas. Foi assim que os projetos “Museu vai à Escola”, voltado a estudantes da rede pública, e o “Línguas Migrantes”, direcionado a professores, saíram do mundo das ideias e começaram a tomar forma.
Sabemos que as visitas ao museu, por meio das mediações educativas realizadas com grupos escolares, são de grande importância para estudantes e professores. Nesses encontros, percebemos como a temática migratória tem sido discutida e trabalhada em sala de aula. Já nos encontros de formação, destinados aos professores, observamos que eles buscavam aprimorar seus conhecimentos sobre as migrações, tanto históricas quanto contemporâneas, a fim de apoiá-los na mediação de conflitos relacionados à multiplicidade e à diversidade cultural presentes no ambiente escolar, muitas vezes composto por estudantes migrantes [1] internacionais e por estudantes brasileiros, migrantes nacionais, oriundos de diferentes regiões do país.
Infelizmente, boa parte destes professores, saiam desolados destes encontros de formação ao perceberem que nós, educadores do núcleo educativo, não tínhamos uma “fórmula mágica” para lidar com a multiplicidade cultural e as tensões que emergem das interações sociais no ambiente escolar. Passamos a observar esse cenário com mais atenção e a refletir sobre as inquietações e questionamentos dos professores, bem como sua busca constante por informações acerca dos países de origem dos estudantes migrantes. Para muitos docentes, esse movimento aparece como uma alternativa para obter subsídios que possibilitem ações de acolhimento mais qualificadas dirigidas aos estudantes migrantes e a suas famílias.
Mas, ao mesmo tempo, por mais significativo que seja obter informações sobre os lugares de origem dos estudantes migrantes, para compreender as manifestações culturais como hábitos alimentares, danças populares, trajes tradicionais e as expressões linguísticas, sempre nos perguntávamos o quanto essa busca é integralmente efetiva? Compreendemos a sua importância, mas também questionamos, já que as culturas não são cristalizadas, ao contrário, são processos dinâmicos que são construídos e reconstruídos historicamente pelo contato entre os indivíduos, sendo essas relações parte fundamental para as transformações. Assim, manifestações culturais, não permanecem iguais ao longo do tempo, não são estáticas e nem imutáveis, pois também sofrem com os efeitos das mudanças econômicas, políticas e sociais. Desta forma, a diversidade de um país, vai muito além de elementos culturais tradicionalmente considerados típicos (Bhabha, 1998; Barth, 2000; Hall, 2003; Hall, 2006; Geertz, 2008; Canclini, 2013).
Seguindo a mesma linha, temos as Festas das Nações, celebrações presentes no calendário anual de muitas escolas. Sabemos o quanto são importantes na tentativa de aproximar a comunidade escolar da diversidade cultural existente no território em que a unidade escolar está inserida. Trata-se de um momento em que os grupos sociais buscam reafirmar e compartilhar sua identidade, assim como os laços com seu estado natal ou país de origem. No entanto, é fundamental problematizar e refletir sobre os interesses em jogo quando as representações culturais são apresentadas de forma essencializada, reforçando estereótipos (Hall, 2006; Gonzalez, 2020). Stuart Hall (2006) observa que as identidades podem ser facilmente transformadas em mercadorias, e Lélia Gonzalez (2020) chama a atenção para o uso da cultura apenas enquanto celebração, desconsiderando as lutas políticas que atravessam essas identidades. Essa perspectiva cria uma sensação de harmonia e acaba por camuflar conflitos, silenciando o racismo, a xenofobia e as desigualdades. Para nós, educadores do Museu da Imigração, é justamente onde reside o perigo.
Para além da busca por conhecimentos sobre migração e, por que não, por estratégias para mediar conflitos interculturais em sala de aula, o contato direto com os professores nos permitiu acessar uma série de outras questões levantadas por eles em relação ao cotidiano escolar. Esses questionamentos envolviam temas como racismo, xenofobia, gênero, interculturalidade e direitos humanos. No entanto, o que mais nos chamou atenção foi a ideia de barreira linguística [2], que dificultava significativamente a comunicação entre professores, estudantes migrantes e suas famílias. O que, na verdade, pode ser considerado uma tentativa de mudança na prática linguística dos atores envolvidos para estabelecer e criar contato, em um esforço de pensar em uma abordagem que reduzisse a tensão desse processo de comunicação. Vale lembrar que, ao chegar ao país de acolhida, o migrante se depara com novos códigos sociais, além de uma grande exigência de interação e, à medida que se integra a essas práticas sociais, o fator linguístico torna-se um elemento fundamental em seu cotidiano.
Dessa forma, a dimensão linguística está diretamente relacionada ao acesso à cidadania. Diante dessas reflexões, que nos provocaram profundamente, começamos a considerar, em diálogo com os professores e com as escolas que nos procuraram, possíveis caminhos pedagógicos capazes de responder a essas problemáticas de maneira comprometida e coerente, respeitando a realidade e as possibilidades de cada unidade de ensino.
No próximo texto desta série, apresentamos o trabalho em rede realizado com as instituições parceiras e o processo de criação do Projeto Línguas Migrantes, assim como a participação das unidades escolares que nos procuraram em busca de apoio. Traremos, ainda, o diagnóstico e o mapeamento produzido por essas escolas sobre as problemáticas presentes em seus territórios, bem como as estratégias elaboradas para oferecer suporte às famílias migrantes que frequentam a unidade escolar.
Notas
[1] São diversas as palavras que podem ser utilizadas para nos referirmos à complexidade de uma pessoa em processo de deslocamento. Imigrante, migrante, emigrante e estrangeiro são termos comumente empregados. Embora esses conceitos sejam utilizados pelo Estado para controlar quem cruza as fronteiras do país, quando são mobilizados em contextos de interação social podem adquirir sentidos distintos e, muitas vezes, carregados de julgamento. Assim, o uso da palavra migrante reconhece quem migra como sujeito de direitos e não apenas como alguém que chega ou que vai embora de um determinado território. Essa mudança é de suma importância, pois implica compreender a migração como um fenômeno essencialmente humano.
[2] A expressão “barreira linguística” é amplamente utilizada nos debates acadêmicos sobre linguagem e migrações. Seu uso naturalizado costuma se referir às dificuldades de comunicação entre falantes de idiomas diferentes. Entretanto, Pinto e Dias (2023) refletem sobre a barreira como um conjunto de desafios enfrentados pela população migrante, que implica diretamente nos direitos linguísticos desses falantes. Segundo as autoras, a barreira opera muito mais como um mecanismo de inspeção linguística que oscila conforme as desigualdades de poder do que como um simples impasse decorrente da falta de domínio do idioma, de um desentendimento ou de um problema de comunicação.
Referências Bibliográficas
[3] BARTH. F. Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras. São Paulo: Fundação editora da UNESP, 1998.
[4] BHABHA, H. K. O local da cultural. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
[5] CANCLINI, N. G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: EdUSP, 2013.
[6] GEERTZ, C. A interpretação das culturas. 1. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
[7] GONZALEZ, L. Por um feminismo afro latino americano. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
[8] HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2006.
[9] HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
[10] MUSEU DA IMIGRAÇÃO. Migrante, Imigrante, Emigrante, Refugiado, Estrangeiro: qual palavra devo usar? - Blog Migrações em Debate. 27 mai. 2019. Disponível em: https://museudaimigracao.org.br/blog/migracoes-em-debate/migrante-imigrante-emigrante-refugiado-estrangeiro-qual-palavra-devo-usar. Acesso em: 17 nov. 2025.
[11] PINTO, J. P.; DIAS A. L. K. Barreiras ou pontos de inspeção? Ideologias linguísticas sobre migração e o modelo de comunicação moderno-colonial. Gragoatá , Niterói, v. 28, n. 60, e-53275, jan.-abr. 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/gragoata/a/c55bBBncYmj4f4qMTJQjgJx/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 27 nov. 2025.